(2021/2024)
"Às vezes a autodepreciação nos livra do pelotão." (Millôr Fernandes)
A árvore mais sozinha do mundo (TAG, em parceria com a Todavia, 2024) é o mais recente romance de Mariana Salomão Carrara. Nele, conhecemos o duro dia a dia de Carlos, Guerlinda, Maria, Pedro e Alice, uma família de fumicultores do interior do Sul do país frente às adversidades do plantio e colheita do tabaco e às investidas opressoras da grande indústria tabagista.
Narrado em primeira pessoa por quatro narradores distintos - uma antiga e experiente árvore venenosa, uma velha caminhonete, um culto espelho colonial e uma infantil roupa de proteção contra os venenos de agrotóxicos utilizados na lavoura -, apresenta uma história áspera e triste, emocionante e desoladora, misturando crítica social e lirismo. Tudo envolto em uma atmosfera sufocante e melancólica, permeada por leves sopros de ilusão e esperança.
São, portanto, quatro tipos de olhares sobre a mesma família, cada um deles narrando e enxergando alguns ângulos específicos que os outros não veem, e todos se complementando e oferecendo ao leitor imagens exteriores e interiores do espaço e das personagens da história - entrecruzando vozes num criativo e bem marcado discurso indireto livre. Os narradores, mesmo restritos a determinados e parciais campos de visão, são unânimes e uníssonos em narrar o sofrimento, o adoecimento e o trabalho árduo e exaustivo da família, bem como a opressão que a grande indústria do fumo exerce sobre ela, obrigando-a a (sobre)viver exclusivamente o ciclo do tabaco.
Num espaço isolado, distante e cada vez mais envenenado pela nicotina e pelos venenos utilizados praticamente sem nenhum cuidado, que concretiza e figurativiza a temática de uma existência quase morta, estagnada, é interessante e bastante significativo o fato dos objetos e seres inanimados serem antropomorfizados e passarem a contar a história. Um procedimento discursivo que gera efeitos de sentido bastante importantes à leitura da obra, pois mostra os seres humanos reduzidos e consumidos por um ambiente adoecido, nocivo e que vai matando-os certeira e lentamente.
E mesmo imersas nesse cenário hostil e repetitivo, castigadas pelas adversidades naturais das geadas e de um sol escaldante quando verão, além da constância impiedosa em plantar, colher e produzir algo que os mata diariamente, há uma beleza que atravessa toda a vivência das personagens, um fiapo de esperança que vai sendo tecido e rompido e novamente tecido e remendado, sempre na perspectiva de que tudo pode melhorar e de que um amanhã diferente ainda é possível. Seja no anseio de que os estudos trarão melhorias à família e à população em geral, ou de que seus esforços na lavoura serão recompensados financeiramente pelos que detêm os meio produtivos da indústria a quem seus produtos são vendidos, a saúde que pode livrar-se da doença causada pela nicotina, ou mesmo a esperança do prêmio e visibilidade na vitória de um concurso de beleza a acontecer. São esperanças frágeis, que geram um tênue véu que, infelizmente, vai se desgastando totalmente até o fim da narrativa.
Há um tensionamento constante ao longo do romance. Dualidades digladiam-se constantemente: opressão e liberdade, vida e morte, o interno e o externo... E isso não apenas referente ao ambiente que os sufoca, ao veneno que os mata, à indústria que os explora e oprime; mas também à tensão gerada por vários conflitos internos que as personagens têm - feridas psicológicas que as marcam profundamente. Existe um mar sensível e interior que insiste em se rebelar, mas que, no entanto, quase nunca jorra ou transborda. Todos da família permanecem presos em si mesmos, "ilhados em dores particulares." O dia a dia e a rotina flagelantes mascaram e escondem um universo pouco conhecido até por eles mesmos e que, somente com a ajuda e sensibilidade dos narradores, o leitor vai apreendendo.
Tomado de passagens intensas, doídas, que vão nos marcando, nos machucando e nos preparando para uma dor impiedosa, Mariana Salomão Carrara escreve com força expressiva e experiência. Maneja a língua portuguesa com esmero e muita habilidade artística, mesclando, sem se perder, uma porção de vozes, cada qual com sua erudição, estilos e variações de usos e materializando-as de maneira bastante verossímil e interessante. Incrusta tudo isso num contexto de denúncia social de exploração e opressão de pessoas do meio rural (mazela ainda tão presente em nosso século XXI!), e nos entrega uma obra sensível e original, onde a palavra, rebuscada e trabalhada artisticamente, transmuta-se em verdadeira Literatura.
Não me abandone jamais, do escritor Kazuo Ishiguro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e com tradução de Beth Vieira, é um romance cuja força está na sutileza e a densidade na riqueza dos detalhes.
Narrado em primeira pessoa, ou seja, por uma das personagens que participa dos acontecimentos, a história gira em torno de um grupo de jovens concebidos artificialmente por meio de clonagem, criados e educados, da infância à maioridade, com a única finalidade de se tornarem doadores de órgãos no decorrer de suas breves existências. Inicialmente, eles atuam como cuidadores daqueles que já realizaram doações e, mais tarde, tornam-se, então, os próximos doadores. Têm, portanto, seus destinos traçados, do nascimento até a morte - ou "conclusão", que é o termo utilizado, conforme conta Kathy H., a narradora do drama.
Ao longo do relato de Kathy H., vamos acompanhando-a, juntamente com seus amigos, desde a fase escolar no instituto Hailsham, passando pela adolescência deles (sempre nessa instituição, uma espécie de internato) até a maioridade - que é quando todos saem para dedicar-se à atuação enquanto cuidadores e, posteriormente, às doações. O ponto inicial dessas memórias é o fim dos anos de 1990, com a protagonista já atuando como cuidadora, com retornos às lembranças da infância e adolescência, numa narrativa alinear (do presente ao passado e, novamente, ao presente).
Evidente que esses relatos em primeira pessoa garantem efeitos de verdade ao que é contado e, o mais significativo, efeitos de subjetividade - por mais objetiva e isenta que a narradora tente parecer ao contar os fatos. Bastante detalhista, a personagem vai arrastando o leitor a todo um universo ficcional extremamente verossímil e sensível, até ao ponto do leitor nem cogitar suspender esse véu de crença nessa suprarrealidade apresentada. Ele realmente crê na problemática discutida, nessa recriação da realidade, e se torna um cuidador também - o verdadeiro destinatário do discurso de Kathy.
O texto é fundamentado (isto é, todos os seus sentidos provêm daí) na oposição básica Natural vs Artificial, ou Natureza vs Cultura, sendo o Natural valorizado positivamente e o Artificial de maneira negativa, pois os indivíduos clonados não são considerados humanos, são criados tendo em vista uma única serventia, que é preservar-se fisicamente para futuras doações de órgãos. Tal sujeito (clones) não questiona essa relação, está, pois, em junção com esse objeto futuro pré-estabelecido e ofertado pelo destinador Hailsham (e todo o projeto representado por ele) que o manipula, principalmente, por sedução, dizendo-o "especial". O sujeito clones passa, em certo ponto da narrativa, a tentar alterar, ao menos em parte, toda essa previsibilidade futura, mas é uma tentativa não de completa negação de seu destino, mas sim de um adiamento de seus deveres acordados com seu destinatário - que, mesmo assim, são cumpridos no final. Portanto, o Natural é afirmado ao fim, já que os jovens clonados, artificiais, não escapam às determinações do futuro planejado a eles: realizar as doações para que outros, os humanos naturais, possam viver.
Isso em linhas gerais, numa rápida ponderação levando em conta a teoria Semiótica, que descreve e explica como se dá a construção dos sentidos de um texto qualquer. Os relatos da narradora tematizam e recobrem tudo o que foi apontado no parágrafo anterior. A tentativa de entender sua situação no mundo e viver como um ser humano natural, mesmo que por pouquíssimo tempo, é a temática central. Outros temas orbitam ao redor disso, relacionando-se e se interpenetrando: o amor, a amizade, a esperança, a ingenuidade face ao mundo, tudo isso figurativizado pelas personagens, suas ações e gestos, suas roupas e objetos; pelos espaços semi-vazios, pelas estradas distante e desertas, pelos distanciamentos dos grandes centros urbanos. Datas, fases da vida, estações do ano e as memórias de Kathy e seus poucos amigos: tudo vai recobrindo e figurativizando toda a sensibilidade desses temas.
Edificações antigas, solitárias e em meio à natureza, ligadas por longas e desertas estradas. Um clima sempre frio, mesmo no verão, com céus cinzentos. Estrutura educacional rígida, tradicional e calcada em normas e regras severas. Todas essa figuras, esses símbolos imagéticos dão à narrativa efeitos de sentido de mistérios e segredos, frieza e desesperança, tristeza e melancolia - que se aliam ao caráter nostálgico dos fatos contados. Essa atmosfera, que cromatiza de cinza Não me abandone jamais, permanece do início ao fim da obra.
É um lembrar e relembrar constante, restrito principalmente a três espaços: Hailsham, o Casario e os centros médicos - os três representando gradações do peso e densidade da narrativa. O primeiro é o menos denso, espaço de amizades, aprendizagens, brincadeiras e descobertas; o segundo é o conflito com a saída da adolescência e um novo olhar para si mesmo, visando a proximidade das doações; por fim, o último, e mais denso, os centros médicos, é o fim - do outro e de si mesmo, é o perceber-se cada vez mais sozinho, é o agarrar-se às lembranças, e nada mais. Eis todo o universo dessas personagens, todo o mundo por elas conhecido.
Diante disso, tendo esse único horizonte à frente, não há sequer a cogitação, já na fase adulta, ou até mesmo na rebeldia da adolescência, de tentar fugir de tudo isso, sumir, lutar por uma outra vida, resistir etc. Existe apenas um caminhar lento e constante rumo a um inexorável destino, a um futuro próximo, pré-determinado e inevitável. Por isso o rememorar constante do passado, o agarrar-se às memórias (que, em muitos momentos, parecem até ingênuas) - única coisa significativa que as personagens têm.
Até mesmo o amor, tema bastante caro à obra, é baço, sem brilho. É belo e comovente, mas sem vigor e com força apenas para tentar adiar o inevitável. Representa tão somente um abraço desesperado às poucas e frágeis memórias construídas e materializadas no ser amado, porém já antevendo que o futuro irá separá-los. Os dois trechos abaixo, envolvendo Kathy H. e Tommy, exemplificam bem essa ideia.
(...) "Então percebi que também ele me abraçava. E assim permanecemos ambos, na beira de um pasto, durante o que me pareceu um tempo enorme, sem dizer nada, apenas abraçados, enquanto o vento soprava furioso contra nós, puxando nossas roupas, a tal ponto que por alguns momentos parecia que estávamos agarrados um ao outro porque era a única forma de não sermos varridos para dentro da noite." (pág. 327)
(...) "Soltou uma risada curta e me deu um abraço, embora continuássemos sentados lado a lado. E continuou: 'Não consigo parar de pensar nesse rio, não sei onde, cujas águas se movem com uma velocidade impressionante. E nas duas pessoas dentro da água, tentando se segurar uma na outra, se agarrando o máximo que podem, mas no fim não dá mais. A corrente é muito forte. Eles precisam se soltar, se separar. É assim que eu acho que acontece com a gente. É uma pena, Kath, porque nós nos amamos a vida toda. Mas, no fim, não deu para ficarmos juntos para sempre.'" (pág. 337)
Não me abandone jamais, como dito no início deste texto, é um romance bastante sutil e sensível, onde tudo vai sendo desvelado e construído lentamente e com riqueza de detalhes, problematizando, inclusive, se o ser clonado possui ou não alma - e como a arte, para alguns, é um fator decisivo nessa questão. Triste, cinza, desesperançado. Mas muito lírico em mostrar o quanto tentamos nos agarrar não à vida ou ao mundo em geral, mas às coisas próximas, que nos tocam diretamente - e que, justamente por isso, nos importam realmente. Uma tentativa de mantermo-nos unidos a isso, abraçados, mesmo sabendo que lá mais adiante, inevitavelmente, teremos que nos separar.
do Ocidente
ao Oriente
do interior
da gente
do Norte
ao Sul
do meu
e de todo
Eu
percorrer
Desbravar
CONHEcer
HABITAR
Alvar Mayor, publicado em volumes definitivos no Brasil desde 2019 pela Editora Lorentz, é um quadrinho que, por ser bastante diferente do que as grandes editoras costumam publicar por aqui, merece ser lido, apreciado e discutido não apenas por aqueles habituados ao mundo da nona arte, mas também por amantes e críticos de arte em geral.
Concebido na década de 70 do século XX por dois dos maiores nomes dos quadrinhos da Argentina, Carlos Trillo e Enrique Breccia, Alvar Mayor é uma obra ímpar, composta por pequenas narrativas que individualizam temas universais tais como o amor, a morte, a vingança, o existir, a loucura etc., cada qual com níveis de profundidade variados e sempre interessantes de serem observados.
A personagem que dá título à criação, Alvar, não é um grande herói - no sentido habitual da palavra quando referente aos quadrinhos; antes, porém, é bastante humano, e é isso, também, que faz a publicação ser objeto de apreciação. Ele é falho, assombrado por remorsos de um passado que vamos tentando apreender ao longo das narrativas, que são contadas de maneira não linear, esparsas, quase soltas displicentemente ao bel-prazer dos autores, tais quais contos folclóricos narrados à medida que vão sendo rememorados.
Além disso, a personagem é solitária por essência, mas não a solidão egoísta tão presente em outras HQs, antes é uma solidão quase lírica, imprescindível ante as incertezas do futuro e da sua "poética, perigosa, mas necessária caminhada" (como consta na introdução do Volume 2, recém-lançado). Alvar é, portanto, dividido e arrastado constantemente de seu presente pelo incerto e escuro porvir e pelo peso das experiências pretéritas.
Mesmo suscetível ao erro e às falhas inerentes ao ser humano, Alvar é íntegro, de personalidade racional e forte, e sempre disposto a lutar por alguma causa que lhe pareça nobre. É um observador astuto do outro, empático, e sempre aprende lições que os caminhos da vida estão a ensinar. Erra, mas adquire sabedoria com seus erros, enquanto perambula pelo mundo sempre em busca de algo, mesmo sem saber ao certo o quê. E tudo isso movido pelo sentimento do amor: talvez o amor ao mistério do acaso; talvez o amor de Lucía, sua eterna amada; ou mesmo o amor pelo caminhar constante, a esmo, desbravando terras e pessoas desconhecidas - solos férteis ao nascimento do novo, seja ele qual for.
Encontramos aventuras, ação, emoção, dinamismo e muito mais nas narrativas de Alvar Mayor; mas tudo isso é secundário ante as reflexões que elas próprias nos trazem. São histórias que terminam, mas continuam por algum tempo em nossa consciência, sendo preenchidas e complementadas por nossas experiências pessoais. Histórias que continuam ressoando na gente. Todas elas materializadas, figurativizadas, no singular preto e branco do artista Enrique Breccia, um gênio que faz de cada página um painel artístico de elevado padrão estético. Um assombro de traços realistas, de luz e sombra.
Como tudo é atravessado ideologicamente, e com sua contextualização histórica referente ao século XVII, Alvar Mayor tece críticas à colonização desumana ocorrida nas américas, ao homem branco, predador e opressor, a toda elite gananciosa - que vê o lucro antes mesmo do humano - e, ainda, àqueles que, tais como cegos, enxergam apenas e tão somente a si mesmos, nunca a realidade circundante. Ponderações que, espalhadas aqui e ali ao longo das inúmeras páginas, tornam a leitura ainda mais rica e instigante.
Com a colaboração de uma equipe bastante competente (em tradução, edição, revisão, restauração de originais etc.), a Editora Lorentz acerta pela segunda vez no mercado das histórias em quadrinhos do Brasil: a primeira por publicar e "ressuscitar" Dylan Dog, o Investigador do Pesadelo em nossas terras e, agora, com os belos e importantes volumes de Alvar Mayor. Materiais de alta qualidade, rico e diferenciado conteúdo (temático e estilístico) e preço bastante justo. Um ganho muito significativo à nona arte em geral e aos leitores brasileiros.
Há mais de 50 anos, lá nos anos 60 do século XX e no início da Ditadura Militar no Brasil, o (então exilado) poeta amazonense Thiago de Mello (1926) escreveu FAZ ESCURO MAS EU CANTO: porque amanhã vai chegar. Deste livro, transcrevo (em caixa alta) uma estrofe do poema CANTO DE COMPANHEIRO EM TEMPO DE CUIDADOS:
O TEMPO É DE CUIDADO, COMPANHEIRO.
É TEMPO SOBRETUDO DE VIGÍLIA.
O INIMIGO ESTÁ SOLTO E SE DISFARÇA,
MAS COMO USA BOTINAS, FICA FÁCIL
DISTINGUIR-LHE O TACÃO GROSSO E LUSTROSO,
QUE PISA AS FORÇAS CLARAS DA VERDADE,
E ESMAGA OS VERDES QUE DÃO VIDA AO CHÃO.
O TEMPO É DE MENTIRA. NÃO CONVÉM
DEIXAR LIVRE O MENINO DA ESMERALDA.
MELHOR É PROTEGÊ-LO DA VIOLÊNCIA
QUE AMARRA A LIBERDADE EM PLENO VÔO.
A SOMBRA JÁ DESCEU, E MUITAS FAUCES
FAMINTAS SE ESCANCARAM FAREJANDO.
CUIDADO COMPANHEIRO, ESCONDE A ROSA,
ESPANTA A MARIPOSA COLORIDA,
É PERIGOSA ESSA CANÇÃO DE AMOR.
Que as nuvens escuras, cada vez mais volumosas em nosso céu, se dissipem e que o sol possa, com liberdade, brilhar sempre! E que esse peculiar e assombroso 7 de setembro de 2021 não se torne uma incessante tempestade.
Brasil.
500 mil mortos!
MEIO MILHÃO DE MORTOS!
mas
mais de um ano depois
e depois de milhares de mortos
a Covid
19
tornou-se um convite
e uma ode
à Morte.
?
e a gente
indiferente.
?
É sempre interessante conjecturarmos, a partir do passado e inseridos num dado presente, sobre as possibilidades de um possível futuro. Algumas dessas conjecturas materializam-se esteticamente, é o caso de OMAC - Operativo Máximo para Ações de Combate (Panini, 2021), criação do quadrinhista estadunidense Jack Kirby (1917-1994) para a DC Comics, nos idos da década de 1970.
nesse breu escuro
decerto ainda haverá
Luz: nosso futuro
(Haicai LIV)
Depois desses dias
de abraços urgentes
iremos além: faremos
(en)laços ardentes
(Haicai LVI)
Os quadrinhos de Dylan Dog não param de surpreender - positivamente, claro. Dessa vez, o longevo fumetti italiano, criado na década de oitenta por Tiziano Sclavi e atualmente publicado aqui no Brasil pela Mythos Editora, nos apresenta A mão errada, uma história sombria e perturbadora sobre arte, obsessão, vida e morte.
Na trama, vemos uma artista que perdera a mão direita e que, a partir da superação desse trauma passa a pintar com a esquerda. Porém, sua arte, agora, não mais representa a beleza da vida, como antes, mas sim cenas mórbidas de terror, dor e morte e que, extraordinariamente, se relacionam com homicídios cometidos, segundo a polícia londrina, pela própria artista dos quadros, a aclamada Anita Novak. Um caso insólito e intrigante, perfeito para o Detetive do Pesadelo Dylan Dog.
Com excelente roteiro de Barbara Baraldi, escritora italiana de horror gótico, e com desenhos de Nicola Mari, A mão errada é, pois, uma narrativa sequencial PERFEITA, que une a atmosfera dos romances policiais, o lado doentio e depressivo da escrita gótica e pertinentes reflexões sobre a arte, vida e morte - tudo materializado figurativamente pela densidade sombria dos cenários noturnos dos traços de Mari - possivelmente influenciado pela vanguarda expressionista.
É uma narrativa resultante da junção de opostos: amor e obsessão, sensualidade e erotismo, sonhos e pesadelos, início e fim da existência, arte e realidade. E é impossível dissociar tais dicotomias, tais dualidades, porque entranhadas e em eterno conflito no interior do ser humano. Aqui, Dylan - o homem - é arrastado, mesmo a contragosto, pelas personagens Anita, a artista do horror, e Rita Leigh, artífice da vida - ambas figurativizando, respectivamente, a bela e misteriosa senhora das trevas, a morte, e a radiante e atraente dama da luz, a vida. Há ainda a tímida Marnie, que simboliza a doçura do amor e, paradoxalmente, a violenta obsessão passional.
Bastante interessante é a caracterização destas personagens: Anita, o horror e morte, nos é apresentada de maneira simples, como alguém comum; Marnie representa os extremos, indo de uma aparência meiga e pura à violenta e obsessiva; Rita é a gótica, maquiagem carregada e tatuagens pelo corpo, bela, vivaz e intrigante, como a vida. Resumidamente, são representações que rompem paradigmas socioculturais, que tentam ressignificar o senso comum e que mostram que as aparências são apenas cascas, uma capa que recobre as profundidades do eu. Resta-nos, tão somente, arrancá-la e penetrar as camadas de sentidos que nos inquietam e nos impelem, mais uma vez e sempre, às questões universais, eternos mistérios, de vida, amor e morte.
Além de bem construída e amarrada, sem pontas soltas, a narrativa surpreende como trama de suspense policial. Todas as figuras que circulam pelas páginas são estranhas e potenciais suspeitos dos brutais crimes investigados - o que nos deixa "perdidos", tentando encontrar pistas e correlacionar os diálogos, as feições e ações das personagens com os grotescos assassinatos. Dylan (e o leitor também!) segue assim, página após página tateando no escuro, às cegas, até o extraordinário desfecho que, justamente por isso, se torna bastante original.
As imagens de Nicola Mari, que aliam o estranho e o gótico a figuras expressionistas, concretizam muito bem o caráter noturno, sombrio e macabro do texto de Baraldi. São imagens densas, de traços grossos e fortes, responsáveis por revelar o aspecto dual da existência. Uma dualidade impossível de ser dividida, dissociada que, quando assim compreendida e aceita, deixa-nos inicialmente perplexos e, ao fim, extasiados - como nosso caríssimo Dylan Dog ao final de A mão errada, quando Anita e Rita, vida e morte, horror e beleza, sombra e luz unem-se, sensual e eroticamente, na última página da história. E que história!
P. S.: Curiosidade: As personagens femininas são muito semelhantes entre si; os detalhes são o que as diferenciam umas das outras (vestes, tatuagens, corte de cabelo etc.). E, pelas poucas fotos da roteirista Barbara Baraldi que estão na internet, é provável que ela mesma tenha "emprestado" seu rosto para caracterizá-las.
P. S. 2: Toda a narrativa acontece à noite e há referências explícitas a O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e ao escritor George Bataille. Ambos, no caso, abordam dualidades em suas obras.
Escrito durante o período de lutas revolucionárias, populares, que buscavam a libertação de Angola ante o jugo opressivo do colonizador português, Mayombe, do escritor angolano Pepetela (pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (1941)), é um romance moderno, áspero, crítico e carregado de lirismo. A obra, escrita enquanto seu autor participava ativamente da guerrilha angolana, registra partes daquele contexto histórico por meio da ficção e, desde sua publicação no início dos anos 1980, alçou Pepetela a um merecido reconhecimento literário, garantindo-lhe em 1997 a maior honraria da literatura de Língua portuguesa, o Prêmio Camões.
Narrado principalmente em terceira pessoa e estruturado em cinco capítulos (A missão, A base, Ondina, A surucucu e A amoreira), mais um Epílogo, trabalha a realidade de maneira ficcional ao contar sobre um grupo de guerrilheiros embrenhados na imensa floresta Mayombe, lutando por liberdade e por um mundo melhor. Uma luta mortal, árdua, vagarosa e constante numa guerra em defesa do nacional, do social e, em igual medida, do individual - já que preconceitos, ideologias referentes a tradições culturais, conflitos interiores, pessoais, também são os inimigos e, portanto, devem ser vencidos.
O espaço que predomina na narrativa é o da densa e pujante floresta Mayombe - quase uma personagem na história. É ali onde acontecem as ações da guerrilha e é ali, também, que a liberdade ansiada por todos mais se mostra. A gigantesca mata é a metáfora da Angola pretendida pela revolução: livre, forte, bela, vigorosa e mãe de todos. É o espaço que encerra e protege as personagens, os fortes guerreiros que, mesmo atravessados por subjetividades, feridos e cicatrizados por suas vivências, empenham-se na construção utópica de uma nova sociedade.
Todas as personagens, no livro, têm grande importância e é difícil destacar as principais, os protagonistas. O Comandante Sem Medo, Ondina e o Comissário Político são os que mais se aproximam desse protagonismo, mas Teoria, Muatiânvua, Lutamos, Mundo Novo dentre outros mostram perspectivas extremamente relevantes sobre os acontecimentos da história. Assumem, nesses momentos, o espaço do narrador, algo bastante moderno e peculiar em um romance com foco narrativo em 3ª pessoa.
Quanto a isso vale ressaltar que tanto Ondina quanto Sem Medo não agem como narradores durante a obra o que, numa primeira leitura seria de se estranhar. Entretanto, é importante salientar que todos que o fazem mostram-se contraditórios, inseguros e, às vezes, até mesmo hipócritas em relação a como pensam e se mostram aos demais e como pensam e são realmente. Logo, fica evidente que há aí um recurso expressivo utilizado deliberadamente pelo autor, o qual resulta, pois, no efeito de sentido de que as personalidades de ambos, Sem Medo e Ondina, já estão construídas, são sólidas e fortes, e mostram-se tais como as vemos, sem meias palavras, sinceras e verdadeiras tais como percebemos através de seus diálogos e reflexões.
Essa força e solidez na personalidade é fundamental na narrativa, principalmente no caso de Ondina que, além de revelá-la como uma pessoa dona de si mesma, uma mulher guiada por suas vontades e desejos, altera até mesmo os rumos da revolução e os destinos de alguns guerrilheiros, pois é ela quem destrói e reconstrói a (até então) frágil personalidade do Comissário Político e reforça ainda mais o Eu e as convicções do Comandante Sem Medo. Isso é bastante interessante na história, já que revela aspectos da guerra interna e subjetiva das personagens, uma guerrilha pessoal no afã de superar medos, anseios, vícios e contradições do ser humano entrincheirado dentro de si mesmo.
Vale ressaltar, ainda, a crítica aos próprios valores e diretrizes preestabelecidos por manifestos revolucionários - valores e diretrizes que, quando estagnados e não rediscutidos, não vistos e avaliados a partir de determinadas nuances e atenuantes, tornam-se dogmas e, portanto, nocivos a toda e qualquer causa comum e revolucionária e sujeitos a cair em vazios teóricos, burocráticos e metodológicos. Tornam-se, sob a ótica argumentativa da personagem Sem Medo, semelhantes ao dogmatismo religioso. Essa, em sua visão, também é uma guerra a ser vencida.
Assim, suscitando reflexões políticas, sociais, filosóficas, humanas e tecendo uma narrativa engajada, que mescla realidade e ficção, Mayombe é uma história de liberdade, luta, coragem e paixão, atravessada por cenas de ação, lirismo e emoções. E, por mais que prevaleçam as dificuldades, melancolias e tristezas de um povo cansado e oprimido, em constante luta (desigual) contra um inimigo muito mais poderoso, há um fio de esperança a entrelaçar e unir tudo e todos - tal como as lianas e cipós da imensa floresta Mayombe; há um sopro de utopia libertária a impelir as personagens em cada uma das pequenas-gigantescas vitórias dessa luta. E é isso o que importa e é por isso que a guerrilha continua, inexorável, a avançar em direção a uma Angola livre e melhor.