terça-feira, 24 de setembro de 2024

Sem título

                                                                                  (2021/2024)


 

domingo, 14 de julho de 2024

A árvore mais sozinha do mundo, de Mariana Salomão Carrara

A árvore mais sozinha do mundo (TAG, em parceria com a Todavia, 2024) é o mais recente romance de Mariana Salomão Carrara. Nele, conhecemos o duro dia a dia de Carlos, Guerlinda, Maria, Pedro e Alice, uma família de fumicultores do interior do Sul do país frente às adversidades do plantio e colheita do tabaco e às investidas opressoras da grande indústria tabagista.

Narrado em primeira pessoa por quatro narradores distintos - uma antiga e experiente árvore venenosa, uma velha caminhonete, um culto espelho colonial e uma infantil roupa de proteção contra os venenos de agrotóxicos utilizados na lavoura -, apresenta uma história áspera e triste, emocionante e desoladora, misturando crítica social e lirismo. Tudo envolto em uma atmosfera sufocante e melancólica, permeada por leves sopros de ilusão e esperança.

São, portanto, quatro tipos de olhares sobre a mesma família, cada um deles narrando e enxergando alguns ângulos específicos que os outros não veem, e todos se complementando e oferecendo ao leitor imagens exteriores e interiores do espaço e das personagens da história - entrecruzando vozes num criativo e bem marcado discurso indireto livre. Os narradores, mesmo restritos a determinados e parciais campos de visão, são unânimes e uníssonos em narrar o sofrimento, o adoecimento e o trabalho árduo e exaustivo da família, bem como a opressão que a grande indústria do fumo exerce sobre ela, obrigando-a a (sobre)viver exclusivamente o ciclo do tabaco. 

Num espaço isolado, distante e cada vez mais envenenado pela nicotina e pelos venenos utilizados praticamente sem nenhum cuidado, que concretiza e figurativiza  a temática de uma existência quase morta, estagnada, é interessante e bastante significativo o fato dos objetos e seres inanimados serem antropomorfizados e passarem a contar a história. Um procedimento discursivo que gera efeitos de sentido bastante importantes à leitura da obra, pois mostra os seres humanos reduzidos e consumidos por um ambiente adoecido, nocivo e que vai matando-os certeira e lentamente.

E mesmo imersas nesse cenário hostil e repetitivo, castigadas pelas adversidades naturais das geadas e de um sol escaldante quando verão, além da constância impiedosa em plantar, colher e produzir algo que os mata diariamente, há uma beleza que atravessa toda a vivência das personagens, um fiapo de esperança que vai sendo tecido e rompido e novamente tecido e remendado, sempre na perspectiva de que tudo pode melhorar e de que um amanhã diferente ainda é possível. Seja no anseio de que os estudos trarão melhorias à família e à população em geral, ou de que seus esforços na lavoura serão recompensados financeiramente pelos que detêm os meio produtivos da indústria a quem seus produtos são vendidos, a saúde que pode livrar-se da doença causada pela nicotina, ou mesmo a esperança do prêmio e visibilidade na vitória de um concurso de beleza a acontecer. São esperanças frágeis, que geram um tênue véu que, infelizmente, vai se desgastando totalmente até o fim da narrativa. 

Há um tensionamento constante ao longo do romance. Dualidades digladiam-se constantemente: opressão e liberdade, vida e morte, o interno e o externo... E isso não apenas referente ao ambiente que os sufoca, ao veneno que os mata, à indústria que os explora e oprime; mas também à tensão gerada por vários conflitos internos que as personagens têm - feridas psicológicas que as marcam profundamente. Existe um mar sensível e interior que insiste em se rebelar, mas que, no entanto, quase nunca jorra ou transborda. Todos da família permanecem presos em si mesmos, "ilhados em dores particulares." O dia a dia e a rotina flagelantes mascaram e escondem um universo pouco conhecido até por eles mesmos e que, somente com a ajuda e sensibilidade dos narradores, o leitor vai apreendendo.  

Tomado de passagens intensas, doídas, que vão nos marcando, nos machucando e nos preparando para uma dor impiedosa, Mariana Salomão Carrara escreve com força expressiva e experiência. Maneja a língua portuguesa com esmero e muita habilidade artística, mesclando, sem se perder, uma porção de vozes, cada qual com sua erudição, estilos e variações de usos e materializando-as de maneira bastante verossímil e interessante. Incrusta tudo isso num contexto de denúncia social de exploração e opressão de pessoas do meio rural (mazela ainda tão presente em nosso século XXI!), e nos entrega uma obra sensível e original, onde a palavra, rebuscada e trabalhada artisticamente, transmuta-se em verdadeira Literatura.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Piquenique na estrada e a insignificância da raça humana

Piquenique na estrada, dos irmãos Arkádi e Boris Strugátski (Aleph, tradução de Tatiana Larkina), é um romance de ficção científica no mínimo curioso, estranho e interessante. Uma distopia de 1972 que gira em torno da insignificância da raça humana ante o universo e que faz do planeta Terra apenas uma simples e ocasional parada na "estrada" cósmica - daí o "piquenique" do título.


Na narrativa bastante dinâmica, cujo protagonista é Redrick Schuhart, o nosso mundo enfim recebeu a visita de alguma raça alienígena. Eles vieram, não fizeram questão de estabelecer contato e simplesmente se foram. Toda a inteligência e prepotência da humanidade são reduzidas à insignificância pelos desconhecidos seres extraplanetários, restando-nos a perplexidade, o abandono e a solidão em nossa pequena ilha de ignorância.

Na partida, talvez como uma sacola de lixo ou uma porção de peças sobressalentes trocadas de suas naves espaciais (impossível saber ao certo!), os aliens deixaram diversos objetos - e são estes, pois, que despertam indagações e a cobiça científica, militar e capitalista dos terráqueos, fazendo surgir os ditos stalkers, que são as pessoas (guias) que se embrenham e se arriscam em adentrar as Zonas de Visitação para explorar e espoliar o que for possível de artefatos para a venda ilegal. 

Redrick é um desses stalkers. Com as ações dele, o leitor vai percebendo os efeitos que tal visita provocou e provoca, tanto no ambiente quanto nas pessoas, nos governos e na sociedade em geral. Radiação, mutação genética, migração, medicina, corrida armamentista, desenvolvimento econômico... Uma miríade de implicações que vão condicionando, direta e indiretamente, o desenvolver da narração e afetando os estados de existência das pessoas. 

Dividido em três partes, o livro é narrado inicialmente em primeira pessoa (pelo próprio Redrick), em seguida um narrador em terceira pessoa assume a narração para, já na terceira parte da obra, diluir sua voz numa porção de outras - num interessante e bem-marcado discurso indireto livre. Tudo isso, refletido na materialização da trama e gerando efeitos de sentido de ritmo intenso, veloz e sem pausas (a não ser ao fim de cada uma dessas partes), faz de Piquenique na estrada uma distopia áspera, sarcástica, crítica e carregada de desesperança. 

O extraordinário, antes temido e curioso, passa ao ordinário e trivial - integrando-se às banalidades egoístas e financeiras da exploração capitalista e belicosa do homem. As instituição, obviamente, recorrem à atividade ilegal dos stalkers, travestindo-a burocraticamente com ares oficiais. As Zonas de Visitação, mesmo perigosas e mortais, são cada vez mais e mais exploradas e, não fosse pela presença física delas, até mesmo a existência de outra raça no cosmo, agora já sabida, seria completamente engolfada e esquecida pelo cotidiano mesquinho que circunda e arrasta as personagens.

Metonimicamente, Redrick figurativiza toda a espécie humana, sempre correndo em desespero por sobreviver, conseguir dinheiro e tentar mudar de vida - esta, sem grandes pretensões e com poucas perspectivas. Numa atmosfera desesperançada e cinzenta, a esperança, ironicamente, demora a aparecer e cristaliza-se, tão somente, quando se percebe que a lenda de um dos artefatos alienígena, a Esfera Dourada, pode ser verdadeira. Este objeto seria, então, responsável pela realização de qualquer desejo, desde que íntimo e sincero.

Porém, e mais uma vez irônica e contundentemente, tem-se a sacada genial da obra (que foi trabalhada de maneira magistral por Tarkóvski na adaptação Stalker, filme também dos anos 1970): o ser humano não se conhece; não faz ideia do que realmente quer; não sabe qual monstro perverso, ou mesquinho, pode habitar suas entranhas. Tomado de superficialidades, trivialidades, mesquinharias diárias, ele soterra seu mais profundo Eu, suas mais claras verdades - perde-se de si, em si mesmo. E isso o faz hesitar, ficar paralisado, temer diante de possibilidades infinitas - e, como vemos na obra, isso pode ser fatal!

No mais, Piquenique na estrada é uma FC esquisita, todavia singular, verossímil e realista. Crua, dura, sarcástica e crítica. Robôs e raios de laser? Luzes, explosões, conflitos cósmicos? A vitória e supremacia da humanidade frente à inteligência e dominação alienígenas? Longe, bem longe disso! Tão somente o inimaginável processado pelo nosso egocentrismo e transformado em algo ordinário. Apenas o mundano, as implicações e indagações sobre a gente mesmo e os nossos sistemas ideológicos e sociais que, no fim, metaforizam a luta existencial contra a incômoda verdade da insignificância do homem no panorama cósmico.

terça-feira, 2 de abril de 2024

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro

Não me abandone jamais, do escritor Kazuo Ishiguro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e com tradução de Beth Vieira, é um romance cuja força está na sutileza e a densidade na riqueza dos detalhes.

Narrado em primeira pessoa, ou seja, por uma das personagens que participa dos acontecimentos, a história gira em torno de um grupo de jovens concebidos artificialmente por meio de clonagem, criados e educados, da infância à maioridade, com a única finalidade de se tornarem doadores de órgãos no decorrer de suas breves existências. Inicialmente, eles atuam como cuidadores daqueles que já realizaram doações e, mais tarde, tornam-se, então, os próximos doadores. Têm, portanto, seus destinos traçados, do nascimento até a morte - ou "conclusão", que é o termo utilizado, conforme conta Kathy H., a narradora do drama.

Ao longo do relato de Kathy H., vamos acompanhando-a, juntamente com seus amigos, desde a fase escolar no instituto Hailsham, passando pela adolescência deles (sempre nessa instituição, uma espécie de internato) até a maioridade - que é quando todos saem para dedicar-se à atuação enquanto cuidadores e, posteriormente, às doações. O ponto inicial dessas memórias é o fim dos anos de 1990, com a protagonista já atuando como cuidadora, com retornos às lembranças da infância e adolescência, numa narrativa alinear (do presente ao passado e, novamente, ao presente).

Evidente que esses relatos em primeira pessoa garantem efeitos de verdade ao que é contado e, o mais significativo, efeitos de subjetividade - por mais objetiva e isenta que a narradora tente parecer ao contar os fatos. Bastante detalhista, a personagem vai arrastando o leitor a todo um universo ficcional extremamente verossímil e sensível, até ao ponto do leitor nem cogitar suspender esse véu de crença nessa suprarrealidade apresentada. Ele realmente crê na problemática discutida, nessa recriação da realidade, e se torna um cuidador também - o verdadeiro destinatário do discurso de Kathy.

O texto é fundamentado (isto é, todos os seus sentidos provêm daí) na oposição básica Natural vs Artificial, ou Natureza vs Cultura, sendo o Natural valorizado positivamente e o Artificial de maneira negativa, pois os indivíduos clonados não são considerados humanos, são criados tendo em vista uma única serventia, que é preservar-se fisicamente para futuras doações de órgãos. Tal sujeito (clones) não questiona essa relação, está, pois, em junção com esse objeto futuro pré-estabelecido e ofertado pelo destinador Hailsham (e todo o projeto representado por ele) que o manipula, principalmente, por sedução, dizendo-o "especial". O sujeito clones passa, em certo ponto da narrativa, a tentar alterar, ao menos em parte, toda essa previsibilidade futura, mas é uma tentativa não de completa negação de seu destino, mas sim de um adiamento de seus deveres acordados com seu destinatário - que, mesmo assim, são cumpridos no final. Portanto, o Natural é afirmado ao fim, já que os jovens clonados, artificiais, não escapam às determinações do futuro planejado a eles: realizar as doações para que outros, os humanos naturais, possam viver.

Isso em linhas gerais, numa rápida ponderação levando em conta a teoria Semiótica, que descreve e explica como se dá a construção dos sentidos de um texto qualquer. Os relatos da narradora tematizam e recobrem tudo o que foi apontado no parágrafo anterior. A tentativa de entender sua situação no mundo e viver como um ser humano natural, mesmo que por pouquíssimo tempo, é a temática central. Outros temas orbitam ao redor disso, relacionando-se e se interpenetrando: o amor, a amizade, a esperança, a ingenuidade face ao mundo, tudo isso figurativizado pelas personagens, suas ações e gestos, suas roupas e objetos; pelos espaços semi-vazios, pelas estradas distante e desertas, pelos distanciamentos dos grandes centros urbanos. Datas, fases da vida, estações do ano e as memórias de Kathy e seus poucos amigos: tudo vai recobrindo e figurativizando toda a sensibilidade desses temas.

Edificações antigas, solitárias e em meio à natureza, ligadas por longas e desertas estradas. Um clima sempre frio, mesmo no verão, com céus cinzentos. Estrutura educacional rígida, tradicional e calcada em normas e regras severas. Todas essa figuras, esses símbolos imagéticos dão à narrativa efeitos de sentido de mistérios e segredos, frieza e desesperança, tristeza e melancolia - que se aliam ao caráter nostálgico dos fatos contados. Essa atmosfera, que cromatiza de cinza Não me abandone jamais, permanece do início ao fim da obra. 

É um lembrar e relembrar constante, restrito principalmente a três espaços: Hailsham, o Casario e os centros médicos - os três representando gradações do peso e densidade da narrativa. O primeiro é o menos denso, espaço de amizades, aprendizagens, brincadeiras e descobertas; o segundo é o conflito com a saída da adolescência e um novo olhar para si mesmo, visando a proximidade das doações; por fim, o último, e mais denso, os centros médicos, é o fim - do outro e de si mesmo, é o perceber-se cada vez mais sozinho, é o agarrar-se às lembranças, e nada mais. Eis todo o universo dessas personagens, todo o mundo por elas conhecido. 

Diante disso, tendo esse único horizonte à frente, não há sequer a cogitação, já na fase adulta, ou até mesmo na rebeldia da adolescência, de tentar fugir de tudo isso, sumir, lutar por uma outra vida, resistir etc. Existe apenas um caminhar lento e constante rumo a um inexorável destino, a um futuro próximo, pré-determinado e inevitável. Por isso o rememorar constante do passado, o agarrar-se às memórias (que, em muitos momentos, parecem até ingênuas) - única coisa significativa que as personagens têm. 

Até mesmo o amor, tema bastante caro à obra, é baço, sem brilho. É belo e comovente, mas sem vigor e com força apenas para tentar adiar o inevitável. Representa tão somente um abraço desesperado às poucas e frágeis memórias construídas e materializadas no ser amado, porém já antevendo que o futuro irá separá-los. Os dois trechos abaixo, envolvendo Kathy H. e Tommy, exemplificam bem essa ideia.

(...) "Então percebi que também ele me abraçava. E assim permanecemos ambos, na beira de um pasto, durante o que me pareceu um tempo enorme, sem dizer nada, apenas abraçados, enquanto o vento soprava furioso contra nós, puxando nossas roupas, a tal ponto que por alguns momentos parecia que estávamos agarrados um ao outro porque era a única forma de não sermos varridos para dentro da noite." (pág. 327)

(...) "Soltou uma risada curta e me deu um abraço, embora continuássemos sentados lado a lado. E continuou: 'Não consigo parar de pensar nesse rio, não sei onde, cujas águas se movem com uma velocidade impressionante. E nas duas pessoas dentro da água, tentando se segurar uma na outra, se agarrando o máximo que podem, mas no fim não dá mais. A corrente é muito forte. Eles precisam se soltar, se separar. É assim que eu acho que acontece com a gente. É uma pena, Kath, porque nós nos amamos a vida toda. Mas, no fim, não deu para ficarmos juntos para sempre.'" (pág. 337) 

Não me abandone jamais, como dito no início deste texto, é um romance bastante sutil e sensível, onde tudo vai sendo desvelado e construído lentamente e com riqueza de detalhes, problematizando, inclusive, se o ser clonado possui ou não alma - e como a arte, para alguns, é um fator decisivo nessa questão. Triste, cinza, desesperançado. Mas muito lírico em mostrar o quanto tentamos nos agarrar não à vida ou ao mundo em geral, mas às coisas próximas, que nos tocam diretamente - e que, justamente por isso, nos importam realmente. Uma tentativa de mantermo-nos unidos a isso, abraçados, mesmo sabendo que lá mais adiante, inevitavelmente, teremos que nos separar.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Sem título

desprende
do chão
esses olhos
faz força
e levanta esse rosto
(junta, pois, tudo de si
em si)
e os atira
bem longe
lá pro horizonte

lugar onde habita
e faz morada
toda esperança.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Uma leitura de O soldador subaquático, de Jeff Lemire



Bons autores são aqueles que, a partir do corriqueiro, do ordinário, conseguem extrair algo original, tocante e, ainda, explorar as camadas de profundidade que os nossos conflitos cotidianos encerram. E é justamente isso que Jeff Lemire faz no seu O soldador subaquático - quadrinho canadense de 2012, traduzido por Paulo Cecconi e publicado aqui no Brasil pela editora Mino, em 2016.

Na obra, cujos desenhos também são do roteirista Lemire, vemos a personagem principal, Jack Joseph, às voltas com seu filho prestes a nascer, seu trabalho - que em alguns momentos é mais como uma fuga e, em outros, simultaneamente uma chance de aprofundar-se em seus problemas mais subjetivos -, o medo e ansiedade da esposa grávida e, o que mais incomoda o protagonista: suas memórias, remorsos e incertezas sobre sua própria vida e em relação à figura de seu falecido pai - figura esta que o assombra e o intimida, pois há a possibilidade dele próprio vir a se tornar, no futuro, semelhante a ela. Temos, portanto, um sujeito em desacordo (disjunto) com as possibilidades que o futuro pode lhe oferecer e arraigado, preso, a um passado de perda e dor, que vai se revelando com a passar da narrativa, e que só é de fato compreendido e assimilado quando Jack preenche algumas lacunas em suas memórias. A partir daí, este passa a harmonizar-se, conjuntivamente, com as possibilidades do porvir e, realmente, a viver com sua família.

Dois termos contrários funcionam como base fundamental e núcleo gerador dos sentidos do quadrinho: interioridade versus exterioridade. O primeiro, pode-se afirmar, tem um valor negativo, pois em determinado nível representa o passado que aprisiona em dor e dúvida a personagem; o segundo termo, por sua vez, apresenta-se no texto positivamente - é o futuro e a aceitação do viver, o libertar-se de traumas e memórias ruins. Há todo um movimento narrativo em O soldador subaquático que deixa claro essa passagem de um estado a outro, essa narratividade da trama que num primeiro momento afirma o passado de Jack, depois ele mesmo nega esse pretérito e, por implicação e consequência, já unido com esposa e filho, afirma o contrário - o amanhã, a vida, o futuro. Em textos bem escritos, como é o caso aqui, tal narratividade, bem como esses conteúdos mínimos que geram os sentidos todos, são perceptíveis - como o são, e de forma explícita e visível, a temática e a figurativização da história em sua totalidade.

Quanto a esses dois aspectos, temas que são recobertos por figuras, a HQ é um todo bastante harmonioso e coerente enquanto peça artística e textual. A interioridade, tematizada pelo passado, memórias e remorsos, é recoberta, concretizada, por uma coesa e interessante rede figurativa: o trabalho de soldador subaquático (aquele que desce às profundezas do oceano para soldar, "consertar", o que está danificado); o oceano (lugar de mistérios profundos); o ser solitário em meio às profundidades do mar; o Halloween (figura relacionada a sua infância, à perda e à morte do pai); etc. Tudo isso arranjado, disposto e relacionado, metafórica e simbolicamente, ao eu mais profundo, misterioso, desconhecido do protagonista - mas um eu que aflige, perturba e que, com urgência, precisa ser descoberto, explorado, "consertado", entendido para, enfim, emergir e vir à tona enquanto faceta pessoal.

A exterioridade, tematizada pelas possibilidades do futuro, aceitação de um porvir diferente e livre dos pesos de um pretérito de dor e não superação, e mesmo da possibilidade de repetir as atitudes e idiossincrasias de seu finado progenitor, aparece recoberta, ou figurativizada, principalmente pela gravidez da esposa de Jack, por um antigo relógio dado por seu pai - objeto este que estava perdido no fundo do oceano e que, ao ser redescoberto, simboliza revelação e superação -, e pelo nascimento de seu filho. Tudo, mais uma vez, coeso e coerentemente entrelaçado à história da personagem principal e aos conflitos extremamente íntimos dela.

Relacionando-se a todo esse conteúdo, a todos esses sentidos que são imanentes à narrativa, está a expressividade de um ótimo texto (simples, sem ser superficial; profundo, sem caracteres apelativos ou melodramáticos) e excelentes painéis desenhados individualmente ou dispostos em páginas duplas. São, pois, o verbal e o não verbal, a palavra e a imagem que, inter-relacionadas, dão ritmo, dinamismo e ancoram pessoas, espaços e tempos às poucas personagens da história, além de gerar vários efeitos de sentido de realidade à obra.

Assim, expressão e conteúdo relacionam-se semissimbolicamente, como ocorre em artes sincréticas - que são aquelas em que variadas linguagens (neste caso o texto verbal e o desenho) se apresentam indissociavelmente; são interdependentes e concorrem, sincreticamente, juntas, para a construção de sentidos e significados que vão se enriquecendo mais e mais à medida que o leitor vai se apropriando da história narrada. Concretizando, pois, níveis de leitura, estruturação de sentido, bastante profundos e abstratos e que emanam dos contrários (já mencionados) interioridade versus exterioridade, numa narrativa de grande apuro artístico.

O soldador subaquático é uma história em quadrinhos que coaduna vários adjetivos positivos: é sensível, bonita, interessante, inteligente etc. e que, como afirmado no início deste texto, consegue extrair do ordinário dia a dia reflexões originais e tocantes. E é por isso, portanto, que deve ser apreciada não apenas pelos leitores da Nona arte, mas da Arte em geral. Jeff Lemire, assim como tantos outros bons autores, deve ser lido e apreciado por todos que cultivam o gosto por histórias sensíveis e que se fundamentam na sensibilidade do (que é) ser humano.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Sem título

do Ocidente
ao Oriente
do interior
da gente

do Norte
ao Sul
do meu
e de todo
Eu

percorrer
Desbravar
CONHEcer
HABITAR



segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Considerações sobre Alvar Mayor, de Carlos Trillo e Enrique Breccia



Alvar Mayor, publicado em volumes definitivos no Brasil desde 2019 pela Editora Lorentz, é um quadrinho que, por ser bastante diferente do que as grandes editoras costumam publicar por aqui, merece ser lido, apreciado e discutido não apenas por aqueles habituados ao mundo da nona arte, mas também por amantes e críticos de arte em geral.

Concebido na década de 70 do século XX por dois dos maiores nomes dos quadrinhos da Argentina, Carlos Trillo e Enrique Breccia, Alvar Mayor é uma obra ímpar, composta por pequenas narrativas que individualizam temas universais tais como o amor, a morte, a vingança, o existir, a loucura etc., cada qual com níveis de profundidade variados e sempre interessantes de serem observados. 



A personagem que dá título à criação, Alvar, não é um grande herói - no sentido habitual da palavra quando referente aos quadrinhos; antes, porém, é bastante humano, e é isso, também, que faz a publicação ser objeto de apreciação. Ele é falho, assombrado por remorsos de um passado que vamos tentando apreender ao longo das narrativas, que são contadas de maneira não linear, esparsas, quase soltas displicentemente ao bel-prazer dos autores, tais quais contos folclóricos narrados à medida que vão sendo rememorados.

Além disso, a personagem é solitária por essência, mas não a solidão egoísta tão presente em outras HQs, antes é uma solidão quase lírica, imprescindível ante as incertezas do futuro e da sua "poética, perigosa, mas necessária caminhada" (como consta na introdução do Volume 2, recém-lançado). Alvar é, portanto, dividido e arrastado constantemente de seu presente pelo incerto e escuro porvir e pelo peso das experiências pretéritas. 



Mesmo suscetível ao erro e às falhas inerentes ao ser humano, Alvar é íntegro, de personalidade racional e forte, e sempre disposto a lutar por alguma causa que lhe pareça nobre. É um observador astuto do outro, empático, e sempre aprende lições que os caminhos da vida estão a ensinar. Erra, mas adquire sabedoria com seus erros, enquanto perambula pelo mundo sempre em busca de algo, mesmo sem saber ao certo o quê. E tudo isso movido pelo sentimento do amor: talvez o amor ao mistério do acaso; talvez o amor de Lucía, sua eterna amada; ou mesmo o amor pelo caminhar constante, a esmo, desbravando terras e pessoas desconhecidas - solos férteis ao nascimento do novo, seja ele qual for.

Encontramos aventuras, ação, emoção, dinamismo e muito mais nas narrativas de Alvar Mayor; mas tudo isso é secundário ante as reflexões que elas próprias nos trazem. São histórias que terminam, mas continuam por algum tempo em nossa consciência, sendo preenchidas e complementadas por nossas experiências pessoais. Histórias que continuam ressoando na gente. Todas elas materializadas, figurativizadas, no singular preto e branco do artista Enrique Breccia, um gênio que faz de cada página um painel artístico de elevado padrão estético. Um assombro de traços realistas, de luz e sombra.



Como tudo é atravessado ideologicamente, e com sua contextualização histórica referente ao século XVII, Alvar Mayor tece críticas à colonização desumana ocorrida nas américas, ao homem branco, predador e opressor, a toda elite gananciosa - que vê o lucro antes mesmo do humano - e, ainda, àqueles que, tais como cegos, enxergam apenas e tão somente a si mesmos, nunca a realidade circundante. Ponderações que, espalhadas aqui e ali ao longo das inúmeras páginas, tornam a leitura ainda mais rica e instigante. 

Com a colaboração de uma equipe bastante competente (em tradução, edição, revisão, restauração de originais etc.), a Editora Lorentz acerta pela segunda vez no mercado das histórias em quadrinhos do Brasil: a primeira por publicar e "ressuscitar" Dylan Dog, o Investigador do Pesadelo em nossas terras e, agora, com os belos e importantes volumes de Alvar Mayor. Materiais de alta qualidade, rico e diferenciado conteúdo (temático e estilístico) e preço bastante justo. Um ganho muito significativo à nona arte em geral e aos leitores brasileiros.



quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Ao peculiar (e assombroso) 7 de SETEMBRO DE 2021

Há mais de 50 anos, lá nos anos 60 do século XX e no início da Ditadura Militar no Brasil, o (então exilado) poeta amazonense Thiago de Mello (1926) escreveu FAZ ESCURO MAS EU CANTO: porque amanhã vai chegar. Deste livro, transcrevo (em caixa alta) uma estrofe do poema CANTO DE COMPANHEIRO EM TEMPO DE CUIDADOS:

O TEMPO É DE CUIDADO, COMPANHEIRO.

É TEMPO SOBRETUDO DE VIGÍLIA.

O INIMIGO ESTÁ SOLTO E SE DISFARÇA,

MAS COMO USA BOTINAS, FICA FÁCIL

DISTINGUIR-LHE O TACÃO GROSSO E LUSTROSO,

QUE PISA  AS FORÇAS CLARAS DA VERDADE,

E ESMAGA OS VERDES QUE DÃO VIDA AO CHÃO.

O TEMPO É DE MENTIRA. NÃO CONVÉM

DEIXAR LIVRE O MENINO DA ESMERALDA.

MELHOR É PROTEGÊ-LO DA VIOLÊNCIA

QUE AMARRA  A LIBERDADE EM PLENO VÔO.

A SOMBRA JÁ DESCEU, E MUITAS FAUCES

FAMINTAS SE ESCANCARAM FAREJANDO.

CUIDADO COMPANHEIRO, ESCONDE A ROSA,

ESPANTA A MARIPOSA COLORIDA,

É PERIGOSA ESSA CANÇÃO DE AMOR.

Que as nuvens escuras, cada vez mais volumosas em nosso céu, se dissipem e que o sol possa, com liberdade, brilhar sempre! E que esse peculiar e assombroso 7 de setembro de 2021 não se torne uma incessante tempestade.

sábado, 19 de junho de 2021

19 de junho de 2021

Brasil.

500 mil mortos!

MEIO MILHÃO DE MORTOS!

mas

mais de um ano depois

e depois de milhares de mortos

a Covid

19

tornou-se um convite

e uma ode

à Morte.

?


e a gente

indiferente.

?

domingo, 30 de maio de 2021

O estranho Porvir em OMAC, de Jack Kirby

É sempre interessante conjecturarmos, a partir do passado e inseridos num dado presente, sobre as possibilidades de um possível futuro. Algumas dessas conjecturas materializam-se esteticamente, é o caso de OMAC - Operativo Máximo para Ações de Combate (Panini, 2021), criação do quadrinhista estadunidense Jack Kirby (1917-1994) para a DC Comics, nos idos da década de 1970.

O quadrinho é uma distopia futurista que resvala em 1984, de George Orwell, e vai além por sua criativa inventividade - mesmo centralizando-se no âmbito do gênero Super-herói. OMAC é um super-homem modificado tecnologicamente por um singular satélite espacial denominado de Irmão-olho, uma Inteligência Artificial resultante de uma secreta e avançadíssima tecnologia. Assim, em um universo onde homem e máquina se confundem, o jovem inseguro e desajustado socialmente Buddy Blank é recrutado pela AGP - Agência Global de Paz e torna-se o heroico OMAC, o "exército de um homem só", combatendo todo tipo de ameaça criminosa. 

Obviamente que tão somente isso, por si só, não mereceria uma resenha como esta, pois isso é o básico em qualquer universo ficcional das HQs de super-heróis. O que realmente chama a atenção, e que verdadeiramente suscita qualquer discussão, são os perigos que surgem no Porvir - o futuro que J. Kirby criou -, germinado a partir da soma de vasto poderio tecnológico mais a insensibilidade e ganância humanas. São, portanto, as ideias referentes ao futuro da humanidade que fazem com que a obra, dos anos setenta (é bom frisar), seja bastante interessante e mereça ser discutida.

A primeira delas surge, estranha e inquietamente, já na capa da HQ: a mulher, até então vista como objeto de prazer, é retratada como um "brinquedo" montável ("Amiga para montar", um ambíguo nome) que engana, seduz, confunde e, nas mãos do crime, explode seu alvo. E ainda: uma organização mundial de segurança e paz, sem distinção de nacionalidade entre seus membros graças a um spray cosmético que manipula a pele do rosto, modelando a todos de igual forma. E mais outra: venda ilegal de corpos jovens com o intuito de receber os cérebros, via cirurgia computadorizada, de sexagenários sem escrúpulos e abastados financeiramente ("Corpo novo, alma velha", literalmente - como nomeado em um dos capítulos).


Além desses, há vários outros conceitos a permear as páginas que compilam as oito edições da série nesse único volume. Alguns muito intrigantes - como veículos que se locomovem com energia magnética, similar a um ímã - e outros tantos assombrosos: pessoas miseráveis, aparentemente moradores de rua, que se submetem a experimentos radioativos ou hormonais e tornam-se monstros que passam a trabalhar para a criminalidade - única alternativa financeira; super-ricos, a elite econômica que pode ALUGAR (isso mesmo!) cidades inteiras para suas festivas excentricidades. Ideias bastante peculiares que se concretizam no Mundo do Porvir - o espaço ficcional da história.

Explicações simples, mas muito verossímeis, tornam-nas bastante críveis dentro do universo de OMAC, ainda mais quando levamos em conta algumas particularidades referentes ao contexto histórico da época em que Kirby o concebeu (Guerra Fria, Ameaça nuclear, Corrida espacial, Avanços tecnológicos etc.). Por mais incríveis, absurdas e insólitas que possam parecer, como roubar a água de rios e oceanos, condensá-la em pequenos blocos pesadíssimos e chantagear outras nações à adquiri-la, tais ideias ainda são bastante lógicas e racionais dentro da narrativa. E isso, essa verossimilhança, é algo grandioso nas tramas da personagem.

Jack Kirby, que criou, roteirizou e desenhou OMAC, é mesmo um gênio da 9ª Arte. Incontestavelmente! Não apenas por estar no cerne das maiores criações do universo dos quadrinhos, como Capitão América, Quarteto Fantástico, Senhor Milagre, X-Men, Novos Deuses, Thor dentre inúmeras outras, mas pelo modo como as materializa. Seu traço é simples, porém preciso, seguro, direto; seu texto é inteligente, criativo e visionário e a junção de ambos (arte e palavra) resulta numa dinamicidade e plasticidade únicas. Seus quadros movimentam-se e fazem ruídos, com um ritmo, uma harmonia e vivacidade marcantes. E tudo isso aparece em OMAC, a cada virar de página. Que artista!

Não obstante isso, essa riqueza no trabalho com os elementos constitutivos da linguagem dos quadrinhos, OMAC - Operativo Máximo para Ações de Combate ainda consegue escapar ao maior clichê do gênero Super-herói: apesar de parecer, ele não é invencível! Quem vier a ler a presente edição ficará espantado com o final. Isso porque o confronto entre máquinas inteligentes (talvez o próximo estágio evolucionário) e o homem pode representar o fim de ambos, já que isso parece ser, ao menos no quadrinho, um caminho ascendente e sem volta de evolução e degradação da humanidade. Essa é a triste, mas importante, reflexão à qual chegamos ao final da leitura desta singular criação de Jack Kirby. Pode ser, portanto, um alerta, um aviso e uma oportunidade para conjecturarmos outros caminhos possíveis para o futuro, outras possibilidades para o nosso Mundo do Porvir.




quinta-feira, 11 de março de 2021

Dois Haicais (frutos da pandemia e da quarentena)


nesse breu escuro

decerto ainda haverá

Luz: nosso futuro

         (Haicai LIV)


        Depois desses dias

de abraços urgentes

iremos além: faremos

(en)laços ardentes

         (Haicai LVI)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Intertextualidade, arte e Dylan Dog

As artes, em geral, referenciam-se constantemente por meio de alusões, paráfrases, citações, paródias etc., dialogando entre si de maneira explícita ou implícita. A isso os estudiosos da área de Letras, responsáveis pelos estudos sobre linguagem, língua e discurso dão o nome de intertextualidade (ou interdiscursividade) que, grosso modo, é a relação dialógica que determinado texto (ou discurso) estabelece com outro(s) texto(s) ou discurso(s). Os quadrinhos, enquanto produção artística e textual, não escapam a isso e estão repletos de referências a outros objetos textuais; estão em diálogo constante em relação a diversos discursos artístico-culturais e são, portanto, ótimos meios de apreendermos e abordarmos esse fenômeno bastante presente em nosso cotidiano.

Um bom exemplo para essa discussão são as histórias em quadrinhos de Dylan Dog, o Investigador do Pesadelo. Por mesclar em suas narrativas as literaturas fantástica, de horror e policial, o cinema, a pintura e a cultura londrina como plano de fundo para suas insólitas tramas, tem-se presente a intertextualidade, já que a personagem dialoga, direta e indiretamente, com todas essas referências literárias, cinematográficas, pictóricas; com todos esses textos (ou discursos). Ou seja, ao lermos alguma HQ de Dylan Dog, também lemos esses outros textos e discursos que constam em suas páginas, intertextual e interdiscursivamente.



Na edição 12 de Dylan Dog Nova Série - A morta não esquece (Mythos Editora, 2020), a intertextualidade é fator fundamental para a construção dos vários sentidos da história. É uma edição que dialoga explicitamente com publicações anteriores do Investigador londrino, fazendo referência à clássica primeira HQ de Dylan e às edições 1 e 7 desta Nova Série. Personagens, falas e situações são retomadas, referenciadas num diálogo constante ao longo de toda a narrativa. 

Claro que essas alusões intertextuais são, muitas vezes, implícitas e sutis. E, para sua percepção e apreensão, nesses casos, dois pontos são fundamentais aos leitores: a curiosidade e o seu repertório sociocultural. Em relação à curiosidade, o leitor deve ter em mente que num texto bem construído tudo se relaciona harmoniosamente, ou seja, NADA está ali por acaso, por engano, em excesso: TUDO gera efeitos de sentidos e TUDO se entrelaça na (e para a) construção de significados do texto. 

Exemplos disso, dentre os muitos que há na citada história, são as referências culturais apresentadas na primeira página de A morta não esquece, quando a roteirista Paola Barbato e o desenhista Bruno Brindisi nos mostram algumas "velharias" (uma caixa antiga do jogo D&D, algumas revistas clássicas de Creepy, Vampirella, Heavy Metal...) das quais Dylan precisa se desfazer. Isso já antecipa sentidos e significados: a trama da vez fará alusão ao passado (e talvez à dificuldade de esquecê-lo). Tudo, mais uma vez, relaciona-se com harmonia ao todo do texto, basta sermos curiosos para perceber e tentar correlacionar o que nos parece solto, díspar ou que está sobrando na página - algo que pode, por vezes, passar despercebido por parecer apenas capricho ou brincadeira dos autores.

Quanto ao repertório sociocultural do leitor, o que ele conhece da cultura e sociedade em geral, sua bagagem cultural, a relação intertextual em questão é bastante sutil, mas muito intrigante: na página 34 vemos, no momento de uma batida policial, uma estranha cena que mostra vários coadjuvantes mortos, empalhados e dispostos em insólitas poses.



Mesmo bastante incomum, dificilmente tal imagem nos remeta a algo conhecido, e provavelmente não encontremos nada semelhante em nossos conhecimentos prévios, em nosso repertório sociocultural. É algo bastante sutil e pode, facilmente, passar despercebido à medida que a leitura avança. Mas, lembremos: NADA num texto bem construído é por acaso; logo, uma imagem como essa também não é. E é aí que a curiosidade do leitor age mais uma vez: se lermos a imagem mais detidamente, conseguimos perceber que no livro sobre a mesa está escrito "M. MERISI". Uma rápida pesquisa nos revelará que esse é o nome de Caravaggio (importante pintor Barroco do século 16), daí é só contemplar algumas de suas obras para deparar-se com a bela e enigmática O martírio de São Matheus.



Assim, o que parecia algo aleatório, na verdade revela-se um diálogo intertextual interessantíssimo e, o mais relevante em se tratando de um objeto textual, vasto em criar efeitos de sentidos e significados para a narrativa. O principal deles, nesse caso, é o fato de A morta não esquece ancorar-se em rixas e problemas familiares para construir-se - basta lembrarmos de Nora Cuthbert e sua singular família -; temas que também são abordados pelo quadro de Caravaggio. Portanto, e mais uma vez: em textos bem construídos nenhum elemento é resultado do acaso; todas as partes são deliberadamente dispostas e correlacionadas.

No mais, são "detalhes" como esses que tornam a leitura cada vez mais enriquecedora, pois instiga e inquieta a curiosidade do leitor - e este deve ser sempre um curioso! - e amplia seu repertório sociocultural, algo fundamental para ler não apenas quadrinhos, mas a sociedade e o mundo em geral - visto que tudo se entranha e se engendra nesse texto maior, nesse grande discurso que são a existência e as grandes criações da humanidade.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Duas palavrinhas acerca de A mão errada (Dylan Dog - Nova Série 11)

Os quadrinhos de Dylan Dog não param de surpreender - positivamente, claro. Dessa vez, o longevo fumetti italiano, criado na década de oitenta por Tiziano Sclavi e atualmente publicado aqui no Brasil pela Mythos Editora, nos apresenta A mão errada, uma história sombria e perturbadora sobre arte, obsessão, vida e morte. 

Na trama, vemos uma artista que perdera a mão direita e que, a partir da superação desse trauma passa a pintar com a esquerda. Porém, sua arte, agora, não mais representa a beleza da vida, como antes, mas sim cenas mórbidas de terror, dor e morte e que, extraordinariamente, se relacionam com homicídios cometidos, segundo a polícia londrina, pela própria artista dos quadros, a aclamada Anita Novak. Um caso insólito e intrigante, perfeito para o Detetive do Pesadelo Dylan Dog.

Com excelente roteiro de Barbara Baraldi, escritora italiana de horror gótico, e com desenhos de Nicola Mari, A mão errada é, pois, uma narrativa sequencial PERFEITA, que une a atmosfera dos romances policiais, o lado doentio e depressivo da escrita gótica e pertinentes reflexões sobre a arte, vida e morte - tudo materializado figurativamente pela densidade sombria dos cenários noturnos dos traços  de Mari - possivelmente influenciado pela vanguarda expressionista.

É uma narrativa resultante da junção de opostos: amor e obsessão, sensualidade e erotismo, sonhos e pesadelos, início e fim da existência, arte e realidade. E é impossível dissociar tais dicotomias, tais dualidades, porque entranhadas e em eterno conflito no interior do ser humano. Aqui, Dylan - o homem - é arrastado, mesmo a contragosto, pelas personagens Anita, a artista do horror, e Rita Leigh, artífice da vida - ambas figurativizando, respectivamente, a bela e misteriosa senhora das trevas, a morte, e a radiante e atraente dama da luz, a vida. Há ainda a tímida Marnie, que simboliza a doçura do amor e, paradoxalmente, a violenta obsessão passional.

Bastante interessante é a caracterização destas personagens: Anita, o horror e morte, nos é apresentada de maneira simples, como alguém comum; Marnie representa os extremos, indo de uma aparência meiga e pura à violenta e obsessiva; Rita é a gótica, maquiagem carregada e tatuagens pelo corpo, bela, vivaz e intrigante, como a vida. Resumidamente, são representações que rompem paradigmas socioculturais, que tentam ressignificar o senso comum e que mostram que as aparências são apenas cascas, uma capa que recobre as profundidades do eu. Resta-nos, tão somente, arrancá-la e penetrar as camadas de sentidos que nos inquietam e nos impelem, mais uma vez e sempre, às questões universais, eternos mistérios, de vida, amor e morte.

Além de bem construída e amarrada, sem pontas soltas, a narrativa surpreende como trama de suspense policial. Todas as figuras que circulam pelas páginas são estranhas e potenciais suspeitos dos brutais crimes investigados - o que nos deixa "perdidos", tentando encontrar pistas e correlacionar os diálogos, as feições e ações das personagens com os grotescos assassinatos. Dylan (e o leitor também!) segue assim, página após página tateando no escuro, às cegas, até o extraordinário desfecho que, justamente por isso, se torna bastante original.

As imagens de Nicola Mari, que aliam o estranho e o gótico a figuras expressionistas, concretizam muito bem o caráter noturno, sombrio e macabro do texto de Baraldi. São imagens densas, de traços grossos e fortes, responsáveis por revelar o aspecto dual da existência. Uma dualidade impossível de ser dividida, dissociada que, quando assim compreendida e aceita, deixa-nos inicialmente perplexos e, ao fim, extasiados - como nosso caríssimo Dylan Dog ao final de A mão errada, quando Anita e Rita, vida e morte, horror e beleza, sombra e luz unem-se, sensual e eroticamente, na última página da história. E que história!

P. S.: Curiosidade: As personagens femininas são muito semelhantes entre si; os detalhes são o que as diferenciam umas das outras (vestes, tatuagens, corte de cabelo etc.). E, pelas poucas fotos da roteirista Barbara Baraldi que estão na internet, é provável que ela mesma tenha "emprestado" seu rosto para caracterizá-las.

P. S. 2: Toda a narrativa acontece à noite e há referências explícitas a O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e ao escritor George Bataille. Ambos, no caso, abordam dualidades em suas obras.





terça-feira, 25 de agosto de 2020

Considerações sobre Mayombe, de Pepetela

Escrito durante o período de lutas revolucionárias, populares, que buscavam a libertação de Angola ante o jugo opressivo do colonizador português, Mayombe, do escritor angolano Pepetela (pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (1941)), é um romance moderno, áspero, crítico e carregado de lirismo. A obra, escrita enquanto seu autor participava ativamente da guerrilha angolana, registra partes daquele contexto histórico por meio da ficção e, desde sua publicação no início dos anos 1980, alçou Pepetela a um merecido reconhecimento literário, garantindo-lhe em 1997 a maior honraria da literatura de Língua portuguesa, o Prêmio Camões.

Narrado principalmente em terceira pessoa e estruturado em cinco capítulos (A missão, A base, Ondina, A surucucu e A amoreira), mais um Epílogo, trabalha a realidade de maneira ficcional ao contar sobre um grupo de guerrilheiros embrenhados na imensa floresta Mayombe, lutando por liberdade e por um mundo melhor. Uma luta mortal, árdua, vagarosa e constante numa guerra em defesa do nacional, do social e, em igual medida, do individual - já que preconceitos, ideologias referentes a tradições culturais, conflitos interiores, pessoais, também são os inimigos e, portanto, devem ser vencidos. 

O espaço que predomina na narrativa é o da densa e pujante floresta Mayombe - quase uma personagem na história. É ali onde acontecem as ações da guerrilha e é ali, também, que a liberdade ansiada por todos mais se mostra. A gigantesca mata é a metáfora da Angola pretendida pela revolução: livre, forte, bela, vigorosa e mãe de todos. É o espaço que encerra e protege as personagens, os fortes guerreiros que, mesmo atravessados por subjetividades, feridos e cicatrizados por suas vivências, empenham-se na construção utópica de uma nova sociedade.

Todas as personagens, no livro, têm grande importância e é difícil destacar as principais, os protagonistas. O Comandante Sem Medo, Ondina e o Comissário Político são os que mais se aproximam desse protagonismo, mas Teoria, Muatiânvua, Lutamos, Mundo Novo dentre outros mostram perspectivas extremamente relevantes sobre os acontecimentos da história. Assumem, nesses momentos, o espaço do narrador, algo bastante moderno e peculiar em um romance com foco narrativo em 3ª pessoa.

Quanto a isso vale ressaltar que tanto Ondina quanto Sem Medo não agem como narradores durante a obra o que, numa primeira leitura seria de se estranhar. Entretanto, é importante salientar que todos que o fazem mostram-se contraditórios, inseguros e, às vezes, até mesmo hipócritas em relação a como pensam e se mostram aos demais e como pensam e são realmente. Logo, fica evidente que há aí um recurso expressivo utilizado deliberadamente pelo autor, o qual resulta, pois, no efeito de sentido de que as personalidades de ambos, Sem Medo e Ondina, já estão construídas, são sólidas e fortes, e mostram-se tais como as vemos, sem meias palavras, sinceras e verdadeiras tais como percebemos através de seus diálogos e reflexões.

Essa força e solidez na personalidade é fundamental na narrativa, principalmente no caso de Ondina que, além de revelá-la como uma pessoa dona de si mesma, uma mulher guiada por suas vontades e desejos, altera até mesmo os rumos da revolução e os destinos de alguns guerrilheiros, pois é ela quem destrói e reconstrói a (até então) frágil personalidade do Comissário Político e reforça ainda mais o Eu e as convicções do Comandante Sem Medo. Isso é bastante interessante na história, já que revela aspectos da guerra interna e subjetiva das personagens, uma guerrilha pessoal no afã de superar medos, anseios, vícios e contradições do ser humano entrincheirado dentro de si mesmo.

Vale ressaltar, ainda, a crítica aos próprios valores e diretrizes preestabelecidos por manifestos revolucionários - valores e diretrizes que, quando estagnados e não rediscutidos, não vistos e avaliados a partir de determinadas nuances e atenuantes, tornam-se dogmas e, portanto, nocivos a toda e qualquer causa comum e revolucionária e sujeitos a cair em vazios teóricos, burocráticos e metodológicos. Tornam-se, sob a ótica argumentativa da personagem Sem Medo, semelhantes ao dogmatismo religioso. Essa, em sua visão, também é uma guerra a ser vencida.

Assim, suscitando reflexões políticas, sociais, filosóficas, humanas e tecendo uma narrativa engajada, que mescla realidade e ficção, Mayombe é uma história de liberdade, luta, coragem e paixão, atravessada por cenas de ação, lirismo e emoções. E, por mais que prevaleçam as dificuldades, melancolias e tristezas de um povo cansado e oprimido, em constante luta (desigual) contra um inimigo muito mais poderoso, há um fio de esperança a entrelaçar e unir tudo e todos - tal como as lianas e cipós da imensa floresta Mayombe; há um sopro de utopia libertária a impelir as personagens em cada uma das pequenas-gigantescas vitórias dessa luta. E é isso o que importa e é por isso que a guerrilha continua, inexorável, a avançar em direção a uma Angola livre e melhor.

sábado, 6 de junho de 2020

sem título

o corpo em quarentena
mas por aí, a mente
divagando

vagando,

captando feito antena
anseios d'um porvir (sementes)
que à força saem voando.

ando

e vejo belas fotografias
agora de todo mundo
emolduradas por simples janelas

(elas -

olhos ternos em meio à pandemia)
que se abrem ao mais profundo
sentimento morador delas:

a Esperança.

sábado, 14 de março de 2020

1984 - Uma breve resenha


Findada a  narrativa de Winston Smith (e Júlia) em 1984, de George Orwell, resta a perplexidade e a constatação da grandiosidade e profundidade do livro.

Dividida em três partes, a trama se desenrola num futuro distópico, com um mundo dividido em três Estados autoritários e totalitaristas, cada qual com seu sistema político opressor. Um mundo que se resume à Lestásia, Eurásia e Oceânia - esta última encerra o espaço por onde trafegam personagens oprimidas e vigiadas pelo líder supremo do Partido único, o Grande Irmão.

O Partido controla tudo. Desde a arte à pornografia consumida pelas massas. Passando pelas notícias, pelo entretenimento, pela educação. Censurando tudo o que não condiz com a ideologia totalitária que o sustenta. Tudo isso com a finalidade única de preservação e expansão de si no poder.

É um mundo perfeito, apático e desesperançado. Vigiado, manipulado e violento. Coletivo e autômato, sem espaço para a individualidade tão inerente a cada um de nós. O indivíduo, em 1984, só existe coletivamente. 

Nesse presente-perfeito eterno, sem passado e cujo futuro será reflexo deste mesmo presente glorioso, o simples fato de duvidar de toda essa realidade torna qualquer um perigoso, ameaçador aos olhos do Grande Irmão. E, por isso mesmo, necessita ser obliterado da existência; passar a nunca ter existido.

É após duvidar da realidade (im)posta pelo Estado, pensamento-crime, que o protagonista do romance inicia um combate desigual contra o Partido e, principalmente, por individualidade, liberdade e identidade. Para autoafirmar-se enquanto ser humano, crítico e racional.

Winston transita no agora juntando estilhaços de memória, porém com a certeza de que, se reunidos e colados, dificilmente formarão um futuro diferente do que a realidade lhe impõe. Ele sabe, e nós também, que a partir da execução de qualquer ato criminoso aos olhos do Partido, o sujeito está, indubitavelmente, fadado à morte. E mesmo tendo ciência disso já nas primeiras páginas da obra, a narrativa nos arrasta para um desfecho surpreendente. Triste e surpreendente.

E, apesar do tênue fio de esperança que perpassa a trama, esperança esta depositada na força colossal, entretanto anestesiada, do povo; apesar dos tímidos sonhos que Winston e Júlia passam a tecer quando juntos; apesar de um movimento conspiratório lutando contra os dogmas do Grande Irmão; e apesar do lirismo presente na narração do dia a dia de uma mulher proleta, estendendo roupa sobre uma laje, cantarolando canções como se a realidade fosse pura e o amanhã belo, ainda assim, ao fim de tudo, é a tristeza que vence. Ela e sua amiga desesperança.

1984 é, portanto, pessimista. Isso é inquestionável. Mas como as distopias são possibilidades de se repensar o agora para garantir um futuro diferente e melhor, seria interessante considerar o casal protagonista como vela numa infindável escuridão. E que, por mais densa e negra que esta venha a ser, duas fagulhas de esperança surgiram. Talvez para mostrar a força do homem e a dificuldade que qualquer poder ditatorial encontrará para subjugá-lo completamente e de forma irreversível. Ser humano é insistir na vida; logo, sempre haverá luta e resistência.

terça-feira, 3 de março de 2020

Duas palavrinhas sobre o quadrinho Carniça, de R. Ramos e M. Bartholo

A arte não tem obrigação de constituir-se enquanto objeto de crítica social. A bem da verdade, a arte não tem obrigação nenhuma. Todavia, quando se nota que esta ou aquela peça estética carrega em si, de maneira sutil ou contundente, posicionamentos referentes a temas sensíveis à nossa sociedade, às nossas realidades, ela passa a transmitir ao apreciador mais riqueza e importância - transcendendo o mero ato contemplativo.

Carniça (2017), publicação independente de Rodrigo Ramos (roteiro) e Marcel Bartholo (desenhos), deliberou em abordar temáticas que permeiam nosso meio social - vício alcoólico, o machismo estrutural, a agressão às mulheres - e, justamente por isso, é um quadrinho que vai além do entretenimento passivo; merece, pois, uma atenção singular enquanto peça artística.

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O protagonista da história, Jonas, depois de mais uma noite de orgia e bebedeira, torna-se o agressor e assassino de sua companheira. Assim, arrasta-se miseravelmente, definhando e apodrecendo página após página, até o mórbido fim da HQ. Fundindo-se, então, de maneira macabra e quase sobrenatural ao título, Carniça, da narrativa.

Sua brevidade, pouco menos de 30 páginas, não diminui em nada sua capacidade expressiva. Esta, que surge visualmente a partir das belas e assustadoras imagens do artista Bartholo - cujas referências criativas ecoam a obra de Portinari -, alia-se a um texto que, para além da realidade brasileira, esbarra na extraordinária literatura de Edgar Allan Poe e, com tal simbiose, narram uma história de horror calcado no cotidiano, perturbadoramente misturando os flagelos do alcoolismo, machismo, feminicídio e remorso - frios elementos do nosso dia a dia.

Publicada num formato maior que o habitual, Carniça é um verdadeiro painel artístico de horror. Suas grandes páginas expõem um traço fantástico e assustador, dando forma a ideias igualmente assustadoras. O texto preciso, sugestivo, permite um vislumbre detalhado das cenas de terror que, com suas cores cinzentas e amarelecidas, emolduradas em preto e salpicadas de vermelho-sangue, nos relega uma infeliz e inquietante sensação de medo e derrota frente a constatação de que se arrastam por aí, apodrecidas, a carniça de inúmeros Jonas mundo a fora.

Por construir-se a partir da cultura brasileira, desigual e, por isso mesmo, mórbida matéria-prima de horrores tais como o da narrativa, e por suscitar reflexões sobre nossa medonha realidade, tirando-nos, mesmo que momentaneamente, da apatia diária na qual estamos imersos e anestesiados, Carniça merece distinção no âmbito da Nona arte. É o horror palpável, real, do nosso dia a dia alimentando a arte e regurgitando questionamentos - incitando-nos a não apenas apreciá-lo, mas discuti-lo e enfrentá-lo.

P. S.: O texto tem pequenas falhas de revisão que devem ser corrigidas em novas tiragens da edição. Eles estão apontados aqui: https://baboseirassubjetivas.blogspot.com/2020/03/revisao-informal-004-fevereiro-de-2020.html

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

palavras abjetas a serem EVITADAS (ou DETURPADAS) no quadriênio 2018-2022:

DIVERSIDADES COTAS EDUCAÇÃO
LIBERDADE HOLOCAUSTO
DIREITOS HUMANOS CONSTITUIÇÃO
ESQUERDA COMUNISMO CUBA
DITADURA DEMOCRACIA
IGUALDADE FEMINISMO IDEOLOGIA
RESISTÊNCIA GÊNERO MULHER
MERCOSUL DIÁLOGO
PROFESSOR (sobre este, o que quiser!!)
INDÍGENAS MOVIMENTOS SOCIAIS
PT MST LGBT
(e seus iguais!)
POLUIÇÃO
PRESERVAÇÃO AMBIENTAL
BIODIVERSIDADE
AQUECIMENTO GLOBAL
REPARAÇÃO HISTÓRICA
LEIS TRABALHISTAS
RACISMO SOCIALISTAS
TOLERÂNCIA DIGNIDADE
POVO
SOCIEDADE
IMPRENSA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
MACHISMO FAKE NEWS
ACESSO À INFORMAÇÃO
PAULO FREIRE MARIELLE FRANCO
SENSO CRÍTICO
FUNCIONALISMO PÚBLICO
DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
PACIFICAÇÃO EMPATIA
CULTURA PRECONCEITO
INCLUSÃO
IMIGRAÇÃO

(QUEIROZ, ADRIANO
MILÍCIA, RACHADINHA
FAVOR PASSAR UM PANO
RIR E FAZER ARMINHA)

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Breves considerações acerca de Procissão, de Vinicius Velo


Meados da década de 20 no sertão nordestino. A seca, os coronéis e o cangaço assolam brutalmente a terra e o povo que habita a região. Resultante deste contexto e embriagados pelo ódio, rancor e obsessão com a vingança, duas poderosas famílias aniquilam-se, geração após geração, numa rixa já secular.

Esta é a premissa de Procissão, do artista Vinicius Velo (roteiro e arte), obra em quadrinhos lançada em 2019 por meio do ProacSP - Programa de incentivo à cultura do Governo do Estado de São Paulo. Suas cerca de 100 páginas apresentam um roteiro forte, bem escrito, bastante fluido além de ótimos desenhos, com traços seguros, firmes e precisos, materializando uma trama bem construída e promissora, dinâmica - daquelas que aprisiona a atenção do leitor até a última página.

Tanto o competente texto quanto a primorosa arte são tentativas bem-sucedidas de aproximar-se da realidade, que vem mesclada ao fantástico, retratada na publicação: a dureza de uma terra embrutecida, repleta de histórias misteriosas, lar de um povo forte que teme tanto a ira de Deus quanto a maldade dos homens. A escrita é áspera, ágil e carregada de reflexões sobre a cultura singular do Nordeste. Os desenhos, por sua vez, figurativizam bela e precisamente a temática do sertão, num claro e escuro resoluto, com linhas grossas que revelam um ambiente seco e castigado, mas esperançoso, e personagens igualmente marcadas pela dureza da natureza local. A tonalidade amarelada das páginas da HQ enfatiza a força do sol abrasador daquele espaço.

Além disso, o ritmo da narrativa é outro ponto positivo de Procissão. As passagens de cena, a dinamicidade dos quadros, os movimentos das personagens e as cenas de ação - tudo perfeitamente costurado pelos textos do narrador e dos balões - revelam as claras influências da estética cinematográfica na obra, bem como na Nona arte em geral.

A história, calcada em realidades verossímeis daquele período histórico, o cangaço em oposição ao poder dos coronéis, é enriquecida pelo fantástico e pela religião de um povo tolhido entre a tirania e o medo, a fé na mudança e a força insurgente dos cangaceiros: ideologias antagônicas, visões distintas de mundo que aturdem e mexem com a vida e as emoções do sertanejo.

Vinicius Velo mostra, com Procissão, o quanto é interessante a abordagem de temas brasileiros associados criativamente com a cultura pop em geral. O leitor se reconhece na história e, por isso, pode vir a problematizá-la e relacioná-la com suas vivências - o que eleva a arte sequencial a um patamar acima do mero entretenimento. É Arte mesmo! E é grande justamente por isso.

Procissão é, por fim, mais uma prova de que a Nona arte brasileira está cada vez mais inteligente, criativa, rica e ousada. E que, mesmo à margem das grandes editoras, a produção quadrinhística independente e de qualidade apenas se fortalece com o passar do tempo, solidificando a tríade mais que necessária na construção de um mercado artístico de quadrinhos no Brasil: temática identificada com nossas realidades culturais, qualidade (de criação, acabamento, distribuição etc.) e preço acessível às massas. Que venham mais obras assim!!


P. S.: Texto em comemoração ao Dia do Quadrinho Nacional, 30 de janeiro.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Uma leitura da capa de Dylan Dog, O caminho da vida

A capa de O caminho da vida, a mais recente publicação (no Brasil) dos quadrinhos da personagem italiana Dylan Dog, é certamente das mais interessantes. Desenhada pelo criativo artista Angelo Stano, capista das narrativas insólitas do Investigador do Pesadelo, ela mostra Dylan nas cinco fases da vida do homem - a infância, a adolescência, a idade adulta, a meia-idade e a velhice - numa escadaria sempre ascendente. Tudo simétrica e precisamente disposto na imagem.



São os pequenos detalhes da imagem, colocados ali de maneira rigorosa e deliberada, que nos leva a considerá-la uma peça singular. O primeiro deles é a espaço-temporalidade da cena: temos noção temporal, a partir do caminhar regular e das mudanças físicas da personagem, mas desconhecemos o espaço, o lugar. Relacionando isso com a nebulosidade difusa que engloba a ilustração, torna-se impossível não fazer uma analogia com a existência, pois conhecemos precisamente seus ciclos, no entanto desconhecemos seus extremos, suas pontas: de onde viemos e para onde vamos depois daqui.

A precisão ascendente da passagem do tempo, seu eterno avançar e sua irreversibilidade são o segundo detalhe. A cada três degraus, um salto temporal, uma nova fase na vida do homem: da infância à adolescência; desta para a fase adulta; depois para a meia-idade e, finalmente, em direção à velhice. Um caminhar constante que finda apenas na inevitabilidade da morte. Tem-se, assim, o ciclo completo.

O terceiro pormenor concentra-se nas feições do rosto de Dylan Dog: a curiosidade vivaz infantil; a imprescindível revolta indiferente da juventude; a tenacidade e perseverança ao fitar um horizonte de expectativas pra vida na fase adulta; a frustração e o cansaço da meia-idade; e a melancolia e espera apática na velhice. Cada nova estação da vida bastante próxima das anteriores, tornando nostálgico o viver.

A quarta minúcia da cena encontra-se nos gestos inerentes às referidas etapas da vida. Neles vemos os impulso e desejo da criança; as mãos nos bolsos simbolizando a aparente indiferença do adolescente; os passos firmes e resolutos do adulto; os ombros arqueados e cansados e a face no chão da meia-idade; e, por fim, o arrastar-se e a estaticidade da fase senil. É deste vagaroso, semi-imóvel arrastar-se que chegamos ao último detalhe que torna a leitura de tal capa tão interessante: a ação de caminhar.

Todas as fases vividas retratadas na imagem enfatizam um constante caminhar em direção ao porvir. Apenas a figura já velha de Dylan Dog não caminha mais, apenas espera - na certeza da sua impossibilidade de avançar. O medo, aqui, torna-se evidente, pois o próximo passo, a morte, é o derradeiro; é o fim do caminho da vida. Vontade, coragem e anseio são substituídos definitivamente por seus opostos: agora é esperar rememorando o que foi ter vivido.

Vida e morte, juventude e velhice, mobilidade e estaticidade, agir e hesitar são algumas das palavras que, em oposição de sentidos, fundamentam e estruturam os vários significados e possibilidades de leitura que emanam da arte desta capa. Significados estes que irão se entrelaçar de maneira perfeita ao universo do Investigador do Pesadelo, Dylan Dog.

P. S.: A história O caminho da vida foi publicada na Dylan Dog Série Clássica n° 13, de janeiro de 2020, pela Editora Mythos.





domingo, 26 de janeiro de 2020

Exclamações e mais exclamações: a Mythos e os gibis Bonelli no Brasil

Desde os bancos escolares aprendemos sobre os variados sinais de pontuação: ponto, reticências, interrogação, vírgula, exclamação entre outros. Cada um deles, no nosso português (brasileiro, já que há outros), é carregado de significados, de valores semânticos, e são responsáveis por tentar manifestar na língua escrita os efeitos de sentido presentes na entonação da língua falada. Assim, entendemos que os significados mudam a partir do tipo de sinal utilizado quando da escrita.

Um rápido e simples exemplo segue: NÃO. NÃO... NÃO! NÃO? "NÃO" - cada um desses usos escritos da palavra NÃO carrega, juntamente com a pontuação que a acompanha, efeitos de sentido diferentes (afirmação, hesitação, raiva, dúvida, um discurso direto, uma ironia ou seja lá o que o contexto situacional queira comunicar); não são, obviamente, a mesma coisa. Justamente por isso é natural que profissionais que realizam traduções estejam acompanhados de outros colaboradores que fazem a adequação do texto ao nosso idioma, já que os efeitos de sentido presentes no idioma de origem devem estar também presentes e fazer sentido na nossa língua - tudo o mais próximo possível da obra original e da interação comunicativa pretendida inicialmente.

Assim como ocorre com variadas línguas, entre o italiano e o nosso português brasileiro há similaridades e divergências, e isso em todos os níveis (fonético, morfológico, sintático, semântico etc.), mas nos perece que, em relação aos sinais de pontuação mais comuns encontrados nos quadrinhos italianos da editora Sergio Bonelli (interrogação, vírgula, reticências, exclamação e ponto), publicados no Brasil principalmente pela Mythos Editora, há muito mais convergências que diferenças, ou seja, os sentidos representados pela escrita destes são bastante semelhantes também no nosso idioma pátrio: o ponto de interrogação marca uma pergunta direta (pois há indiretas também); o ponto final representa uma pausa máxima ao fim de uma declaração; as reticências marcam a interrupção da frase, sua suspensão; etc. No entanto causa estranheza o uso singular do ponto de exclamação feito pela Mythos e, consequentemente, a sua falta de correspondência com os sentidos pretendidos, bem como com as normas já estratificadas do nosso português, algo predominante e preocupante em algumas de suas publicações.

O ponto de exclamação, convém ressaltar, é responsável por buscar transmitir, na escrita, emoções: tensão, medo, raiva, espanto, exaltação no tom de voz entre outras - é isso que se aprende desde tenra idade escolar. Não obstante tais palavras, provindas do senso comum, recorremos ao Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras, de 2011, que, na página 1005, diz que ele é um "sinal (!) usado para marcar o fim de uma frase exclamativa." Por exclamação, entende-se, como definido pelo mesmo dicionário, desta vez na página 559, "(Gram.) Pontuação usada numa frase escrita para expressar alegria, surpresa, raiva etc." Para findar está rápida explanação sobre o ponto de exclamação parafraseamos as palavras do filólogo, gramático e professor Celso Cunha que, na sua Gramática do Português Contemporâneo, pág. 431, corrobora o que foi dito aqui, apontando as VARIEDADES de seu valor pausal para sugerir a mímica EMOCIONAL - seja de espanto, surpresa, alegria, entusiasmo, de cólera, dor, súplica e muitas outras, além de acompanhar interjeições ou termos semelhantes.

Definido e entendido isso, o que observamos como singular regra nos quadrinhos bonellianos publicados pela Mythos é a errônea substituição do ponto final pelo ponto de exclamação ao fim de toda e qualquer sentença declarativa, negativa ou afirmativa, estando ela ou não expressando quaisquer emoções das personagens. Lógico que não pesquisamos todos os quadrinhos italianos que a referida editora traz ao Brasil, mas notamos que isso é a regra nas publicações de, pelo menos, três personagens: o caubói Tex Willer, o detetive do insólito Dylan Dog e o heroico Dragonero - personagens com uma grande soma de títulos lançados em bancas de jornais.

Tex; Tex Willer; Tex Platinum; Maxi Tex; Tex Gigante; Dylan Dog Série Clássica; Dylan Dog Nova Série; Dragonero Especial e Dragonero bimestral. Nove títulos regulares que dão à exclamação as mesmas características do ponto (final), desrespeitando não apenas regras convencionais da ortografia brasileira, mas muitas vezes deturpando variados efeitos de sentido contidos nos referidos sinais de pontuação e deixando à margem o fato de que cada qual tem seus próprios usos e especificidades. A bem da verdade, o ponto, salvo quando empregado pelo discurso indireto do narrador, nunca aparece nos diálogos das personagens - ele foi deliberadamente banido de tais revistas!

Basta, pois, abrir tais publicações, em páginas aleatórias mesmo, e constatar: TODO FINAL DE FRASE DECLARATIVA É MARCADO COM UM PONTO DE EXCLAMAÇÃO. As personagens podem estar conversando trivialmente, cochichando, gritando, enfatizando algo, tomadas por emoções... Pouco importa o contexto, não há distinção para o emprego do referido sinal gráfico! Abaixo, segue uma simples amostra com as páginas (que poderiam ser quaisquer outras) que exemplificam a presente discussão.

Pág. 61, de Tex Willer 11;



Pág. 205, de Maxi Tex 2;



Pág. 206, de Dragonero Especial;



Pág. 35, de Dragonero 1 (bimestral);



Págs. 23 e 29, de Tex - Graphic Novel 2;




Pág. 29, de Dylan Dog Série Clássica 12.



Interessante e importante, além de positivo, ressaltar que em Editoriais, Extras e páginas que apresentam notícias jornalísticas, por exemplo, não há este erro. Um sinal claro e evidente de que nem todas as sentenças ali constantes expressam emoções; daí ser impossível, grosseiro mesmo, mantê-las repletas de exclamações! Vejam (e leiam) os Editoriais de Tex 600, de Tex Gigante 34, de Dylan Dog Nova Série 6, os Extras escritos por Roberto Recchioni e Angelo Stano na Dylan Dog Série Clássica 5 e a página 19 de Dylan Dog Série Clássica 12 (reproduzida abaixo), na qual consta uma notícia de jornal sobre Johnny Freak. Respeita-se o original italiano, a pontuação adequada do português e, obviamente, os efeitos semânticos, de sentido, sugeridos pelos textos.

Página 19 de DYD - Série Clássica 12



Uma coisa, de fato, podemos depreender: o uso inadequado, abusivo e singular do ponto de exclamação apontado aqui é uma atitude deliberada; é uma decisão, por mais errônea e estranha que seja, da equipe editorial da Mythos Editora. O motivo, não sabemos, mas podemos confirmar isso com o trecho original do roteiro de Gigi Simeoni para a história Na fumaça da batalha, presente no Editorial de Dylan Dog Nova Série 7. Tal trecho representa a página 13 da edição 6 da mesma série e a partir dele podemos estabelecer que a Mythos substitui todo ponto final por exclamações, criando, com isso, uma padronização absurda e desnecessária do conteúdo original. Vale ressaltar que a página original dessa história, a número 9 de DYD 343, seguiu exatamente o que fora colocado por Simeoni em seu roteiro. Abaixo, as três páginas.

O roteiro de G. Simeoni presente no Editorial de DYD - Nova Série 7



A página 13 com a tradução e adaptação da Mythos, presente em DYD - Nova Série 6



A página original de DYD 343, da Bonelli



Se tal atitude é uma escolha da editora, como nos parece, é uma escolha errada e, portanto, deve ser repensada, pois o ideal é aproximar-se o máximo possível da obra de arte originalmente concebida, além do fato já mencionado de que cada sinal de pontuação tem suas particularidades semânticas e de uso. A página 15 de DYD - Nova Série 2 é mais um exemplo dessa infeliz e errônea escolha adotada pela Mythos Editora. Segue, abaixo, juntamente com ela, a sua correspondente italiana.

Página 15 de DYD - Nova Série 2, da Mythos




Página 15, do original italiano



Insistimos em afirmar que os quadrinhos são arte, e como tal devem ser tratados (por leitores, autores, críticos, editores...). No mais, pesquisamos outras histórias, também de DYD, publicadas por outras editoras no Brasil - Lorentz, Globo e Record - e, importante enfatizar, o ponto final (ou a pontuação original) foi mantido nas traduções/adaptações. Isso pode ser conferido nas páginas abaixo.

Página 23, de DYD 1 (Record)



Página 65, de DYD, em Fumetti - O melhor dos quadrinhos italianos (Globo)



Página 16, de DYD 3 - Mater Morbi (Lorentz)



É provável que tal atitude, esta singular, inadequada e imprecisa uniformização do texto nos balões, deva-se ao fato de precisar agilizar o trabalho na Redação (única explicação razoável!), já que o volume de lançamentos aumenta cada vez mais. Mas, a julgar pelos valores cobrados por tais produtos, esse é um ERRO imperdoável e que atenta contra os leitores e, por extensão, os autores de tais criações. Esperemos, pois, um amadurecimento editorial de uma empresa gigante no setor e há décadas consolidada no mercado de quadrinhos brasileiro. Esperemos que, doravante, tal erro possa ser corrigido e não se torne a única regra para a publicação de fumetti pela Mythos Editora.


P. S.: Vale destacar que em todas as histórias da Fumetti - O melhor dos quadrinhos italianos, da Globo, a pontuação segue as regras convencionais e o original - inclusive na história de Tex.

P. S. 2: Interessante observar que a coleção Gold de Tex, publicada pela editora Salvat, segue a mesmíssima uniformização do texto. Isso talvez se deva ao fato da equipe editorial responsável pelas histórias ser a mesma da redação da Mythos. Abaixo, um exemplo a partir da página 61 do primeiro número de Tex Gold.



P. S. 3: Dampyr segue o mesmo padrão e Diabolik, que não é da Bonelli, não. Ambos são publicados no Brasil pela Editora 85.