terça-feira, 14 de agosto de 2018

A parte que falta (porque DEVE faltar)



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Aceitar que somos, e sempre seremos, incompletos é o que nos torna inteiros. 

Pode parecer senso comum, mas a frase aqui posta é bastante lógica. Passamos vidas inteiras tentando preencher espaços em nós mesmos que jamais serão preenchidos. Vazios que nos recusamos a aceitar. Uma falta que, quando compreendida como inerente à condição humana, será aceita como parte imprescindível do nosso ser.

Essas foram, basicamente, as ponderações feitas após a agradável leitura de A parte que falta, do americano Shel Silverstein (Sheldon Allan Siverstein, 1930-1999). O livro, recentemente publicado pela Companhia das Letrinhas, é incrível; uma verdadeira mistura dos gêneros poesia, prosa e, até, história em quadrinhos - pois que é o resultado da junção do visual e do verbal numa sequência narrativa.

Conta a história de uma personagem que se dá conta da sua incompletude e que, por isso mesmo, sai pelo mundo à procura da parte que lhe falta. Acerta e erra, se felicita e se entristece na busca contínua por completar-se. Até descobrir que o que nos falta é contentarmo-nos com nós mesmos; e que a tal parte que nos falta está, afinal, na gente mesmo. E que, portanto, tudo à nossa volta é importante, mas não indispensável. E daí interessa estarmos por aí, perambulando e apreciando tudo o que há de bom no mundo e em nós.

O autor materializa tudo isso de forma simples, mas magistral: a partir de traços, palavras e versos singelos, numa simbiose entre poesia, desenho e prosa. De leitura fluida, dinâmica e rápida A parte que falta nos mostra de maneira bastante lírica e bela o que todos nós, intuitivamente, já sabemos: que somos incompletos. E que sempre tentamos nos preencher com o que achamos que precisamos: amor, consumo, ideologias, coisas, pessoas etc.

Mas o que muitos não têm ciência, e o que o livro também nos mostra, é que ainda que tivéssemos tais partes em nós, ainda assim seríamos não completos. Ainda assim haveria os vãos, os vazios, os espaços necessitando do desejo de serem preenchidos... E então, e só depois disso, é que perceberíamos e entenderíamos que por faltar algo em nós é que somos completos, únicos, humanos. Que nós somos a parte de nós mesmos no fim das contas. Porque é preciso que nos "falte" alguma coisa para que possamos viver.

Antes preocupado e aflito, tentando desesperadamente completar-se, agora é sorrir e cantar, caminhando pelas estradas da vida: "Ai-ai-iô, assim eu vou,/em busca da parte que falta em mim."



P. S.: O livro é originalmente da década de 70!! E Ganhei minha edição do meu grande amor, numa data especial.

  

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

aos homens frios (depois da "Rosa")

há 73 anos
homens frios se maravilhavam
com a flor estranha
e gigantesca
criada em jardins artificiais
e esquisitos
repletos de telas e fios e
computadores e botões e
fórmulas atômicas

olhos frios e insensíveis
artificiais também
marejaram, brilharam
de excitação
quando o botão virou flor
e de forma medonha
e quilométrica
plantou-se em terrenos
repletos de Vidas

mãos frias aplaudiram
e bocas frias sorriram
babando poder
talvez ao redor de alguma mesa
ao ver e sentir coisas estranhas
cores, fumaça, cheiros
tudo radioativo e atômico
e artificial e destrutivo
que absorvia e destruía
tudo pelo caminho sem volta
e que abria os portões de um novo mundo
frio
onde só cabiam homens frios

e ainda hoje
agora!
há botões estranhos
dessa flor estranha
sob os cuidados
amorosos
e excitados
de frios homens ansiosos
que acariciam
eroticamente
suas estranhas criações