quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Ar condicionado, de Gustavo Piqueira (porque é o Dia do Quadrinho Nacional)


Hoje, 30 de janeiro, se comemora o Dia do Quadrinho Nacional. Isso porque, lá pelos idos de 1869, o ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843 - 1910) publicou As aventuras de Nhô-Quim, obra considerada o embrião das modernas narrativas gráficas ou histórias em quadrinhos. Assim, é importante escrever algo a respeito - tanto para reforçar esse marco histórico quanto para valorizar obras e autores da Nona arte brasileira.

A HQ escolhida para a referida comemoração é Ar condicionado, do artista Gustavo Piqueira, publicada pela editora Veneta em 2018. Trata-se de uma simbiose entre as linguagens dos quadrinhos, das artes visuais e da literatura. E antecipo: é uma criação genial!

Construída a partir das trivialidades experimentadas cotidianamente, dos nossos pequenos e vastos conflitos interiores diários, Ar condicionado nos mostra o quão solitários e perdidos somos e estamos em nós mesmos - esse oceano de ideias incomunicáveis.

O enfado repetitivo do dia a dia, os descaminhos que a mente nos obriga a seguir, nossa incapacidade de interação com o outro e, sobretudo, a insegurança que a sociedade atual nos obriga a ter são abordados de forma sutil pela narrativa dinâmica de Piqueira. Cada qual preso em seus pequenos-grandes dilemas existenciais.

Tudo materializado de maneira singular e genial. Os cenários são sugeridos, quase inexistentes, já que a ênfase é dada aos interiores, ao que há contido dentro das personagens. Estas são expressas por silhuetas, contornos que abrigam em si uma torrente condicionada de pensamentos os quais, vez ou outra, escapam no todo semi-vazio das grandes cenas ou quadros.

É esse ar condicionado em nós, perdido nas vastidões dos espaços das páginas da narrativa, a principal personagem. É um universo-linguagem a preencher, completa e de forma aparentemente desconexa, todos os lugares do nosso eu, vazando, gota a gota, na ínfima interação e no pobre diálogo com o outro. E isso é angustiante: um mar represado, cuja fresta existente dá vazão ao que transparecemos ser.

Gotas desse mar pingam e dizem pouco sobre quem realmente somos e o que queremos. Apenas traduzem a nossa solidão e a nossa incapacidade de nos darmos a conhecer pelo outro, nos confinando a uma vida social mas, paradoxalmente, solitária.

Ar condicionado é, portanto, uma obra que merece ser lida, apreciada e discutida nesse Dia do Quadrinho Nacional. Além disso, é um exemplo de como o quadrinho brasileiro é capaz de ser surpreendente.

P. S.: Imagem retirada do site da editora Veneta.







segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Mito! Mito! (Soneto a ser censurado)

Eis que um novo governo, Bolsonaro,
assume a presidência do país.
Acordando uma turba de ignaros
que berra: É o fim do "Mal", pela raiz!

Guerra à tolerância, ao senso crítico,
à História, à Ciência e à Razão.
Agora é o Ódio - discurso típico
de homens covardes, como o Capitão.

Que grita e manda, de longe, escondido,
por temer toda a fala divergente.
(Décadas de política... E perdido!)

"Farsa e mentiras! É tudo o que tens!"
"Mito!" "Mito!" Urra a acéfala gente,
refletida no Cidadão de bens.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Aventuras de uma criminóloga: um breve registro


Dentre as várias histórias interessantes que li nos últimos dias, destaco Como duas fúrias, de G. Berardi e L. Calza, e desenhada por Roberto Zaghi. Faz parte da edição 137 de J. Kendall - Aventuras de uma criminóloga (Editora Mythos, 2018). É simples, atual, tocante e bastante contundente.

Conta sobre dois jovens cheios de problemas pessoais e sem perspectivas quanto a algum futuro. Ambos são pobres, oriundos de lares desestruturados e buscam no mundo do crime um modo de dar vazão às suas frustrações. Como ocorre cotidianamente com milhares de jovens das periferias do mundo.

A trama nos faz refletir sobre nossa própria realidade, nos mostrando como a desigualdade social é o grande mal das sociedades. Nos faz pensar em como a falta de cultura e a desesperança no porvir influenciam, decisivamente, nossas vidas. E mais: como o discurso meritocrático, que subjaz à narrativa, é falacioso.

E, principalmente, nos abre os olhos para o fato de que, muitas vezes, é preciso enxergar toda a narrativa que leva alguém a cometer algum tipo de crime já que, segundo a criminóloga Júlia Kendall, "a violência nunca é um gesto repentino, é um percurso que vem de longe." Isso não para perdoarmos os criminosos, mas para entendê-los e, assim, criarmos meios de evitar que tudo isso continue a ocorrer.

Assim, tal como as Fúrias da mitologia, as duas personagens personificam a vingança. Uma vingança contra um mundo cinza, que não lhes oferece oportunidades. Um mundo tal como o nosso: violento, cru e extremamente desigual, que nos oprime contra a parede e nos força a diárias atrocidades.


P. S.: Imagem retirada do site da Editora Mythos.