terça-feira, 6 de junho de 2017

A graça literária em O caso de Charles Dexter Ward, de Lovecraft

Uma parte interessante a respeito da literatura, que é, grosso modo, a palavra empregada artisticamente, reside no acabamento formal de determinada obra. Sendo, pois, a arte literária a materialização de suprarrealidades, de mundos fictícios - reflexos verossímeis, portanto, da nossa realidade -, a expressão de um conteúdo por meio de palavras, contida na dualidade forma X conteúdo, é indissociável para a expressividade artística de qualquer peça dessa natureza.

Edificar universos. Eis o fundamento da arte da palavra. Seja romântico, fantástico, de horror, aventuresco e investigativo, de crítica social etc., estes universos são forjados pelo léxico, ou seja, tomam formas a partir da inter-relação, seletividade e disposição deliberada deste. Tal qual arquiteto, portanto, labuta o escritor.

Sendo assim, se a literatura é essa dança entre forma e conteúdo, significante e significado, pode-se estabelecer, prontamente, que parte da graça desta arte existe apenas quando o primeiro elemento da dicotomia citada é TRABALHADO - com esmero, apuro e dedicação deliberada. Caso contrário, é somente mais uma história entre tantas outras existentes. Em O caso de Charles Dexter Ward, do norte-americano H. P. Lovecraft, tem-se um perfeito exemplo do que foi até aqui exposto.

Na obra, conta-se a história de um sujeito, Charles, que, interessado em arqueologia e antiguidades, descobre a existência de um parente antigo, praticante de magia negra e pesquisador do ocultismo. A partir dessa constatação o protagonista se lança num passado sombrio e de horrores cósmicos - elementos da mitologia criativa e do estilo do autor.

Na sinistra trama, extremamente rica quanto à linguagem utilizada, e de um alto nível de detalhamento, depois de descobrir a existência de um tio, cuja bruxaria nefasta se resume ao oculto e sobrenatural, Dexter Ward se embrenha em pesquisas acerca de rituais mágicos até, inconscientemente, trazer em si mesmo a reencarnação macabra do sinistro parente - o feiticeiro Joseph Curwen.

Além de ser uma ótima história de horror e investigação, destaca-se no livro o requinte linguístico em alto grau de formalidade, obviamente empregado para a obtenção de efeitos de sentidos relativos ao passado histórico que sustenta a trama, e o detalhamento quando da construção da narrativa, com um bom e paulatino progresso dos acontecimentos - até o seu terrível auge. Tais elementos engrandecem e edificam a leitura da obra.

Com referências a entidades cósmicas e abissais, práticas ritualísticas, investigações ocultas em livros velhos etc., O caso de Charles Dexter Ward consegue ser interessante, envolvente e assustador, deixando de lado sustos bobos e aparições sobrenaturais tolas e desnecessárias bastante presentes nas histórias de terror. Assim, por meio da materialização tensa, profunda e rica desse enredo simples, tem-se a riqueza expressiva da qual se extrai parte fundamental da referida graça literária.

É, portanto, todo esse trabalho formal, esmerado,  por parte do escritor, que torna os mundos ficcionais mais sensíveis, verossímeis e palpáveis ao leitor. Sem a construção e exploração dos sentidos que a forma garante para o conteúdo, qualquer enredo - por mais interessante que venha a ser - torna-se menos instigante e, consequentemente, a obra artística resultará insípida e superficial.