quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Guerra Remota: 2117

D. T. ainda não completara dezesseis anos, mas sua inteligência e habilidades, aliadas a um desempenho singular para sua idade num dos melhores institutos de educação e pesquisas, o qualificaram um ano antes ao Projeto G. M. - contrariando um pouco seu criterioso regulamento. Findado o período inicial de rigorosos testes e adaptações,  ele estava apto a dar o passo derradeiro de sua promissora carreira: as avaliações em campo.

Disciplinado férrea e arduamente, não demonstrava inquietação alguma, assim como todos os membros do Projeto. Trajou mecanicamente sua vestimenta azul e branca estrelada e dirigiu-se  à sala de operações 1.0.1 - 1984, que ficava cerca de um quilômetro abaixo do gigantesco edifício em que estava, fortificada em aço, concreto e variados sistemas de segurança físicos e digitais. 

Sua impassividade era assustadora. Salvo o brilho úmido e indisfarçável de seus olhos azuis, podia-se dizer que não era humano, mas sim um dos recentes modelos de robôs lançado pela gigante tecnológica Natura Máquina - Vidas inorgânicas. A pele clara, com cabelos lisos e de coloração semi-alaranjada a enfeitar-lhe o alto da cabeça, mais seus traços finos e delicados, aristocráticos, faziam-no lembrar uma importante figura política e histórica do século passado - o principal idealizador e articulador do Projeto G. M, para o qual, agora, trabalhava.

Uma combinação de leituras de suas digitais e de seus globos oculares permitiu seu acesso ao espaço para onde fora designado recentemente. Designação esta acompanhada de êxito e, em virtude de seu precoce ingresso, uma primeira condecoração.

***

A sala era bastante vasta. Uma sucessão de painéis de controle, luzes e monitores preenchiam suas quatro paredes. Uma infinidade de botões e mecanismos altamente sensíveis e tecnológicos, com ares de importância e periculosidade extremas, eram manipulados precisamente por seis indivíduos de aspectos juvenis e sadios, de olhares inteligentes e atentos por trás de grossos óculos.

Impressionava a grande redoma de vidro localizada milimetricamente no centro daquele ambiente. Tinha cerca de cinco metros de extensão e uma altura que se aproximava dos três e meio. Era transparente e com um aspecto de grande poder de resistência. Em seu interior, podia-se ver uma solitária e confortável poltrona giratória. Tubos entravam e saíam de alguns orifícios rente ao chão e conectavam-se, objetivamente, à aparelhagem geral do restante da sala.

Frio e impassível, D. T. repetiu as ações já feitas inúmeras vezes em incontáveis simulações. Caminhou com passos firmes e decididos, em linha reta, até a construção vítrea, tocando-a com seus cinco dedos. Uma luz vermelha rapidamente deu lugar a uma luz verde para, em seguida, uma portinhola deslizar para cima - garantindo-lhe passagem até o assento solitário daquela fortificação de vidro.

Ao sentar-se, algo penetrou rapidamente e com um pouco de incômodo sua nuca. Uma leitura de retina foi realizada por uma fraca luz azul, acompanhada de um suave zunido. Um instante depois, um capacete descia e se acoplava em sua cabeça, óculos especiais encaixavam-se em seus olhos, agulhas perfuravam as veias de ambos os braços e um painel de controle surgia-lhe na frente, flutuando à altura do abdome. Tudo isso nos poucos segundos necessários para que a pequena porta da redoma se abaixasse, fechando-se silenciosa e hermeticamente - apartando-o da realidade exterior.

Os seis técnicos trocaram olhares e gestos que denotavam satisfação. A fase de acomodação e simbiose indivíduo-console estava completa.

***

D. T. tinha agora os olhos injetados, fixos em pontos definidos da gigantesca tela de trezentos e sessenta graus que a estranha redoma de vidro havia se transformado, e a qual, rodeava-lhe completamente. Suas pupilas dilatadas e inquietas revelavam tensão e atenção extremadas, e o contínuo injetar de drogas estimulantes em sua corrente sanguínea intensificava ainda mais suas capacidades cognitivas e sensoriais. Seus dedos frenéticos moviam-se com espantosa rapidez - rivalizando com o deslocar de seus olhos. Os controles sob suas mãos eram operados rápida e eficientemente, enquanto sua poltrona girava com desvairada velocidade e precisão. Hora ou outra, seus olhos reviravam e sua respiração e batimentos cardíacos, monitorados com doentio esmero pelos sujeitos fora da construção vitralizada, tornavam-se mais intensos.

O grande abrigo de vidro exibia, em toda a sua extensão curvilínea, imagens de guerra e terror. Explosões e mais explosões tomavam consideráveis partes da tela. Em outras, soldados destroçados, rajadas de armas cada vez mais letais, fogo e confusão preenchiam tal pandemônio. Essas cenas alternavam-se, tal qual antigos jogos de videogames, com visões panorâmicas, aéreas, da totalidade do terreno. Nestas, viam-se umas dezenas de máquinas humanoides, forjadas em aço, devastando e massacrando uma cidade periférica qualquer. Edifícios em chamas, carros destruídos e capotados, pessoas mortas ou correndo insanamente. Se Deus olhava e cuidava sobre a face do globo, nessa hora sua face estava distraída e virada para algum outro canto do universo. Aquele pedaço miserável da Terra, nesse momento, era perscrutado, cuidadosamente, e de um assento remoto e solitário, pelo jovem D. T.

Alteravam-se novamente a visão e as imagens da tela. Mais uma vez via-se tudo de perto, frontalmente: esguichos vermelhos, misturados à poeira, respingavam na câmera dianteira do módulo de batalha. Tudo com os movimentos rápidos e precisos dos dedos de D. T. Inimigos eram atravessados violenta e bruscamente por potentes e letais raios luminosos; em desespero, escondiam-se onde era possível: dispositivos de busca os localizavam e, simultaneamente, os destruíam; granadas solares os secavam até seus ossos retorcerem-se, expostos e calcinados, após céleres toques e deslizar de mãos.

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Pouco mais de uma hora se passara. O suficiente para que os clarões de bombas fossem diminuindo, dando lugar à devastação caótica e irracional, escombros, cadáveres e uma quantidade estonteante de fumaça subindo e encobrindo um habitual cinzento céu lá no alto.

Estimulantes pararam de escorrer para as veias de D. T., enquanto seus movimentos iam ficando mais lentos e seus olhos começavam a  assumir seu aspecto frio e corriqueiro. O drone de batalha projetava, desta vez e do alto, a imagem de uma dezena de módulos de batalha vasculhando o perímetro e eliminando, aqui e ali, os poucos sobreviventes caídos pelo caminho. A cidade fora tomada. A missão de anexação e expansão territorial tivera êxito.

Os tubos que conectavam D. T. à poltrona giratória foram retirados, óculos e capacete foram devidamente suspensos, e um último toque de dedos desconectou seu cérebro da fortificação de vidro e fez desaparecer todas as luzes e cenas e monitores ao seu redor. Ele levantou-se um pouco ofegante e tomado por uma leve tontura, com algumas gotas de suor a escorrer-lhe das faces. Dirigiu-se à saída transparente, deixando atrás de si uma caixa craniana vazia e mortal.

Um dos sujeitos da sala apertou-lhe as mãos, amparando-o e guiando-o até seu alojamento, para que ele descansasse. O caminho estava apinhado de jovens iguais a D. T., saídos, igualmente, de outras tantas esferas vítreas, todos em direção a um obrigatório descanso.

***

Horas depois, já descansado e em seu alojamento, D. T. recebeu, via dados digitais e em seu córtex cerebral, o relatório da missão. Rapidamente absorveu as informações e, mais uma vez, surgiu algo que o diferenciava de uma máquina qualquer. Um quase imperceptível sorriso de satisfação, orgulho e patriotismo brotou espontaneamente no canto de seus lábios ao ler as últimas linhas da síntese do documento:

Anexação e expansão de território concluídas com sucesso.

Margem de êxito da missão: 100%;
Baixas entre o inimigo: 100%;
Baixas do Império Ocidental: 0%;
Tempo efetivo de realização da missão: 1h e 13 min.;
Tempo a ser superado: 1h e 05 min.;
Pontuação do soldado D. T. : 0.98 (escala de 0 a 100).
Fim do relatório.