sábado, 14 de março de 2020

1984 - Uma breve resenha


Findada a  narrativa de Winston Smith (e Júlia) em 1984, de George Orwell, resta a perplexidade e a constatação da grandiosidade e profundidade do livro.

Dividida em três partes, a trama se desenrola num futuro distópico, com um mundo dividido em três Estados autoritários e totalitaristas, cada qual com seu sistema político opressor. Um mundo que se resume à Lestásia, Eurásia e Oceânia - esta última encerra o espaço por onde trafegam personagens oprimidas e vigiadas pelo líder supremo do Partido único, o Grande Irmão.

O Partido controla tudo. Desde a arte à pornografia consumida pelas massas. Passando pelas notícias, pelo entretenimento, pela educação. Censurando tudo o que não condiz com a ideologia totalitária que o sustenta. Tudo isso com a finalidade única de preservação e expansão de si no poder.

É um mundo perfeito, apático e desesperançado. Vigiado, manipulado e violento. Coletivo e autômato, sem espaço para a individualidade tão inerente a cada um de nós. O indivíduo, em 1984, só existe coletivamente. 

Nesse presente-perfeito eterno, sem passado e cujo futuro será reflexo deste mesmo presente glorioso, o simples fato de duvidar de toda essa realidade torna qualquer um perigoso, ameaçador aos olhos do Grande Irmão. E, por isso mesmo, necessita ser obliterado da existência; passar a nunca ter existido.

É após duvidar da realidade (im)posta pelo Estado, pensamento-crime, que o protagonista do romance inicia um combate desigual contra o Partido e, principalmente, por individualidade, liberdade e identidade. Para autoafirmar-se enquanto ser humano, crítico e racional.

Winston transita no agora juntando estilhaços de memória, porém com a certeza de que, se reunidos e colados, dificilmente formarão um futuro diferente do que a realidade lhe impõe. Ele sabe, e nós também, que a partir da execução de qualquer ato criminoso aos olhos do Partido, o sujeito está, indubitavelmente, fadado à morte. E mesmo tendo ciência disso já nas primeiras páginas da obra, a narrativa nos arrasta para um desfecho surpreendente. Triste e surpreendente.

E, apesar do tênue fio de esperança que perpassa a trama, esperança esta depositada na força colossal, entretanto anestesiada, do povo; apesar dos tímidos sonhos que Winston e Júlia passam a tecer quando juntos; apesar de um movimento conspiratório lutando contra os dogmas do Grande Irmão; e apesar do lirismo presente na narração do dia a dia de uma mulher proleta, estendendo roupa sobre uma laje, cantarolando canções como se a realidade fosse pura e o amanhã belo, ainda assim, ao fim de tudo, é a tristeza que vence. Ela e sua amiga desesperança.

1984 é, portanto, pessimista. Isso é inquestionável. Mas como as distopias são possibilidades de se repensar o agora para garantir um futuro diferente e melhor, seria interessante considerar o casal protagonista como vela numa infindável escuridão. E que, por mais densa e negra que esta venha a ser, duas fagulhas de esperança surgiram. Talvez para mostrar a força do homem e a dificuldade que qualquer poder ditatorial encontrará para subjugá-lo completamente e de forma irreversível. Ser humano é insistir na vida; logo, sempre haverá luta e resistência.

terça-feira, 3 de março de 2020

Duas palavrinhas sobre o quadrinho Carniça, de R. Ramos e M. Bartholo

A arte não tem obrigação de constituir-se enquanto objeto de crítica social. A bem da verdade, a arte não tem obrigação nenhuma. Todavia, quando se nota que esta ou aquela peça estética carrega em si, de maneira sutil ou contundente, posicionamentos referentes a temas sensíveis à nossa sociedade, às nossas realidades, ela passa a transmitir ao apreciador mais riqueza e importância - transcendendo o mero ato contemplativo.

Carniça (2017), publicação independente de Rodrigo Ramos (roteiro) e Marcel Bartholo (desenhos), deliberou em abordar temáticas que permeiam nosso meio social - vício alcoólico, o machismo estrutural, a agressão às mulheres - e, justamente por isso, é um quadrinho que vai além do entretenimento passivo; merece, pois, uma atenção singular enquanto peça artística.

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O protagonista da história, Jonas, depois de mais uma noite de orgia e bebedeira, torna-se o agressor e assassino de sua companheira. Assim, arrasta-se miseravelmente, definhando e apodrecendo página após página, até o mórbido fim da HQ. Fundindo-se, então, de maneira macabra e quase sobrenatural ao título, Carniça, da narrativa.

Sua brevidade, pouco menos de 30 páginas, não diminui em nada sua capacidade expressiva. Esta, que surge visualmente a partir das belas e assustadoras imagens do artista Bartholo - cujas referências criativas ecoam a obra de Portinari -, alia-se a um texto que, para além da realidade brasileira, esbarra na extraordinária literatura de Edgar Allan Poe e, com tal simbiose, narram uma história de horror calcado no cotidiano, perturbadoramente misturando os flagelos do alcoolismo, machismo, feminicídio e remorso - frios elementos do nosso dia a dia.

Publicada num formato maior que o habitual, Carniça é um verdadeiro painel artístico de horror. Suas grandes páginas expõem um traço fantástico e assustador, dando forma a ideias igualmente assustadoras. O texto preciso, sugestivo, permite um vislumbre detalhado das cenas de terror que, com suas cores cinzentas e amarelecidas, emolduradas em preto e salpicadas de vermelho-sangue, nos relega uma infeliz e inquietante sensação de medo e derrota frente a constatação de que se arrastam por aí, apodrecidas, a carniça de inúmeros Jonas mundo a fora.

Por construir-se a partir da cultura brasileira, desigual e, por isso mesmo, mórbida matéria-prima de horrores tais como o da narrativa, e por suscitar reflexões sobre nossa medonha realidade, tirando-nos, mesmo que momentaneamente, da apatia diária na qual estamos imersos e anestesiados, Carniça merece distinção no âmbito da Nona arte. É o horror palpável, real, do nosso dia a dia alimentando a arte e regurgitando questionamentos - incitando-nos a não apenas apreciá-lo, mas discuti-lo e enfrentá-lo.

P. S.: O texto tem pequenas falhas de revisão que devem ser corrigidas em novas tiragens da edição. Eles estão apontados aqui: https://baboseirassubjetivas.blogspot.com/2020/03/revisao-informal-004-fevereiro-de-2020.html