sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A força expressiva de Watchmen



Após quatrocentas páginas, terminei a leitura da obra máxima (?) de Alan Moore e Dave Gibbons: Watchmen (1986/1987). Há, ainda, umas dezenas de folhas com extras que umas duas horas resolverão. Enquanto lia, ainda sob o peso do forte impacto do roteiro de Lição de anatomia, também de Moore, fui anotando algumas coisas a respeito da história - pois sabia que me sentiria obrigado a registrar por escrito minhas impressões sobre algo tão singular no universo da arte sequencial.
             
A primeira qualidade perceptível já a partir das primeiras páginas do gibi é a riqueza do roteiro. Este é escrito e disposto de maneira detalhada, intrincada, cuidadosa. Não há pontas soltas; tudo é perfeitamente amarrado e perturbadoramente profundo. Nada, na trama, é superficial. Muito pelo contrário: com o avançar das edições, o nível de profundidade só aumenta, nos impelindo, forçosamente, à reflexão.
                            
Em Watchmen há algo, genuinamente, sem igual. O que ora parece uma história panorâmica do tão conturbado século XX mostra-se, ainda, maior. Explora o conceito de heroísmo e super-heroísmo, bem como a ascensão do gênero nos quadrinhos nas décadas de 30 e 40, a paranoia do fenômeno UFO - alimentada com a divulgação de A guerra dos mundos, de Orson Wells -, o cinzento pós-guerra e suas consequências: a questão do Vietnã, os mandos e desmandos políticos das potências mundiais (em especial, a dos EUA) e, principalmente, o medo ante a iminência de um conflito nuclear apocalíptico, resultante da Guerra Fria.
                
Ainda permeando a trama com fatos do século XX, Alan Moore espalha mais algumas importantes referências, tais como: literatura Beat, as experiências alucinógenas de expansão da mente por meio de algumas drogas, a valorização das culturas orientais, o avanço desenfreado (e inconsequente!) da tecnologia, o avanço do capitalismo e a sua hegemonia com a globalização. Enquanto o (frio) Dr. Manhattan simboliza a descoberta, o uso e o poder nuclear, Adrian Veidt representa o inescrupuloso e poderoso mercado. É nestes dois personagens que está o núcleo, o centro da HQ.
                
Watchmen nos apresenta uma realidade distópica, onde a loucura e a paranoia com o fim do mundo coexistem com a esperança de um futuro de paz. Uma paz imposta com autoritarismo e com as “maravilhas” que os mercados podem oferecer. E por isso mesmo há uma aura nostálgica envolvendo a narrativa. Uma nostalgia de quando se acreditava que o mundo não era tão complicado.
                
A guerra, a sordidez política, o comodismo e o distanciamento entre os homens, a bipolarização do mundo, a desigualdade social são o pano de fundo onde circulam pessoas feridas pelos anos e pelas condições impostas pela vida. E quando pensamos haver alguma esperança, algum resto de sensibilidade dos poderosos, somos surpreendidos com o apocalipse.
                
Deus, um ser híbrido constituído de megalomania, beligerância atômica e “princípios” mercadológicos nos condena a um “paraíso”. Nos ofusca com o brilho de uma paz fabricada e nos afoga no comodismo de um universo globalizado e politicamente correto. Nos lança, paradoxalmente, nas trevas luminosas de um mundo “pacificado”

..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... Mas Watchmen é muito mais que isso. É de uma profundidade sem igual. E eu poderia ainda tentar falar do por que ser o centro de tudo um simples jornaleiro, seus clientes e sua banca de jornal. Ou mesmo tentar discutir a "loucura" e as sequelas proféticas de Rorschach. Ou mesmo a sensibilidade e fúria de Laurie. Ou a metáfora viva da comédia humana: o Comediante. Ou... a relação do mundo presente, e seus personagens, com a narrativa pulp que engendra a trama...

O roteirista parece ter um segredo. Um segredo indispensável a qualquer um que queira trilhar estes caminhos: escreve com a obrigação de tentar conceber a melhor obra artística já criada pelo homem. É exigente além dos limites consigo mesmo, tem uma obrigação social, estética, moral e política na realização de algo inconcebível. E, por isso mesmo, sua criação não pode ser adjetivada por outras palavras que não sejam extraordinária, fantástica e genial.
               
Enfim, a obra é vasta - em política, filosofia, história, literatura, psicologia etc. - é atemporal - embora dependente daquele contexto histórico específico - e tudo o que aqui fora dito não representa muita coisa não. Mas parece ser a ponta desse grandioso e interessante iceberg.


P. S.: Interessante como a questão da força criadora da mente humana está presente tanto em Lição de anatomia - já que é ela que dá vida ao Monstro do Pântano - quanto em Watchmen e no acidente que garantiu o poder atômico do Dr. Manhattan. O poder de conceber tudo por meio do pensamento do homem deve ser uma ideia fixa em Alan Moore. 

P. S. 2: No capítulo "Relojoeiro", construído sob a temática do tempo, o Dr. Manhattan aparece contemplando "A persistência da Memória", de Salvador Dalí - o que é extremamente significativo ao personagem, pois para ele o tempo (passado, presente e futuro) é fluido.

P. S. 3: O fundo dos quadrinhos apresenta, também, uma narrativa, uma movimentação. Não é estático e esquecido pelos criadores, pelo contrário: há encontros e desencontros que culminam no próximo quadro.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Mas talvez se estivesse...

Estou sozinho em casa. E por isso mesmo, ela parece maior. Gigantesca. Vago de um cômodo a outro, arrastando o tédio comigo. Lanço-me numa cadeira, outra hora no sofá... por vezes na cama.
Nenhum gesto resolve minha inquietação, um desespero contido, reprimido, prestes a furar e jorrar por todo meu corpo. Ligo o rádio: vozes intermináveis. Desligo. Ligo a televisão: vozes intermináveis e movimentos estáticos. Desligo. Não me dizem, perguntam, respondem nada.

Talvez se ela estivesse aqui... Mas não está! Mas talvez se estivesse... eu poderia distrair-me nos seus sorrisos, prenderia-me nos seus cabelos, entorpeceria-me na tua voz e descobriria-me, perdido, em seus abraços. E isso seria tudo pra mim.

Faríamos brincadeiras bobas um com o outro, riríamos hora de leve, hora estridentemente por pequenas coisas. Falaríamos coisas sérias também. Tão sérias que nossos rostos se contrairiam, se tornariam pesados e tristes.

Mas nossos olhos se encontrariam novamente, nos fazendo lembrar o quanto nos amamos. E então voltaríamos a sorrir - por dentro e por fora e principalmente por dentro. E em nossas consciências, findado o riso externo, do corpo, ainda ecoaria os sons dos sorrisos de dentro - seja do coração ou da mente ou de Deus ou dos cosmos.

E passaríamos as manhãs e as tardes e as noites juntos. E na escuridão noturna, eu esperaria você dormir, e ainda lhe daria uma última olhada, um último afago, um beijo na testa, e então eu dormiria. E, muito provavelmente, eu sonharia com você, meu amor.