quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Raul Seixas e seus extremos



Catalizador de extremos. Talvez seja esta a mais verdadeira e óbvia definição sobre a figura Raul Seixas e sua incrível e extraordinária obra poética. Poética? Sim, visto que, inicialmente, os poemas eram cantados com o acompanhamento de instrumentos musicais.

Claro que esta característica foi sendo deixada à margem ao longo da sucessão dos séculos, mas a sonoridade se perpetuou nas composições dos poetas, que exploravam cada vez mais o aspecto sonoro das palavras quando da confecção artística dos seus versos. Assim, pode-se, sim, considerar grandes feitos musicais como poemas.

E as músicas de Raul Seixas, muitas delas, são bons exemplos da definição dada no início deste texto, de que o músico foi um catalizador de extremos. Uniu em si e na sua poética o ordinário e o extraordinário, o popular e o erudito, o místico e intrincado com o real e de fácil assimilação. Roque e baião, jegue e lambreta, nacional e estrangeiro etc.. Enfim, metamorfoseou-se, deliberadamente, com o vulgar e o insólito, numa dança que amalgamava o velho e tradicional e o novo e contracultural, sendo um dos exemplos mais notórios  da antropofagia modernista na música brasileira.

Essa faceta multifacetada do maluco beleza é bastante visível se pensarmos nas músicas Conserve seu medo e Magia de amor - ambas com a coautoria de Paulo Coelho e pertencentes ao LP Mata virgem, de 1978 (WEA). A primeira representando o domínio de composições poéticas populares, ou seja, construída por meio de redondilhas - neste caso, menores - , e a outra revelando características eruditas, com versificação hendecassilábica, isto é, com onze sílabas poéticas em cada verso. As duas mostrando fundamentação literária.

Conserve seu medo

Conserve seu medo
mantenha ele aceso
se você não teme,
se você não ama
vai acabar cedo

Esteja atento
ao rumo da história
mantenha em segredo
mas mantenha viva
sua paranoia

Conserve seu medo
mas sempre ficando
sem medo de nada
porque desta vida
de qualquer maneira
não se leva nada

E ande pra frente
olhando pro lado
se entregue a quem ama
na rua ou na cama
mas tenha cuidado!

Além de ter uma mensagem linda e simples, de fácil assimilação, vê-se o uso dos versos pentassílabos, de cinco sílabas poéticas, na metrificação da canção. Esse tipo de versificação foi e é bastante usado em composições populares e seu uso mostra o quanto Raul conhecia as ferramentas necessárias para criar sua arte de acordo com suas finalidades expressivas. Assim, uma temática popular como em Conserve seu medo, é apresentada em estrutura também popular. Temos, aí, um bom exemplo de um dos extremos da criação raulseixista.

Por sua vez, refletindo o outro lado do artista,

Magia de amor

Me fascina tua morte mal morrida
e tua luta pra ficar em tal estado
E teu beijo, tão fatal, nunca me assusta
pois existe um fim pro sangue derramado

Me fascinam os teus olhos quando brilham
pouco antes de escolher quem te seduz
e me fascinam os teus medos absurdos
a estaca, o alho, o fogo, o sol, a cruz

Me fascina a tua força, muito embora
não consiga resistir à frágil aurora
E tua capa, de uma escuridão sem mácula

Me fascinam os teus dentes assustadores
e teus séculos de lendas e de horrores
e a nobreza do teu nome, Conde Drácula

Aqui, uma breve observação revela o uso da métrica hendecassilábica, ou seja, os versos se apresentam com onze sílabas poéticas, além das estrofes se materializarem em dois quartetos e dois tercetos, característica do soneto - que por si só já é algo requintado. Este tipo de versificação, de acordo com alguns estudiosos, marcou um novo estágio nas produções poéticas do século XVI, sendo ofuscado, posteriormente, pelo verso decassílabo (este sim, parte fundamental do soneto). Em Magia de amor, não há um tema popular; pelo contrário, há uma espécie de homenagem a um Conde, alguém de posição social elevada. Justamente por isso, essa temática é apresentada numa forma requintada e erudita, exemplificando o outro extremo da produção de Raul Seixas.
 
O que se quer dizer com tudo isso é que o maluco beleza transitava, deliberadamente, por esses extremos acima mencionados. Tanto em questões temáticas, quanto em relação à materialização expressiva desses temas, encontram-se os extremos popular X erudito expressos por versos redondilhos e hendecassílabos.

É claro que esses detalhes não são perceptíveis à maioria das pessoas; necessitam, pois, de uma análise e de um estudo para virem à tona. Porém, essas análises existem aos milhares para comprovar uma genialidade bem antes já revelada (e, aí sim, percebida facilmente por àqueles que escutam com atenção essas músicas) pelo conteúdo e pela mensagem das criações poéticas de Raulzito - esse eterno ícone da cultura brasileira.


   
P. S.: Imagens retiradas do Google.
P. S. 2: As informações referentes à versificação constam na Gramática do português contemporâneo, de Celso Cunha.

     

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Algumas palavras sobre o ótimo Projeto AYLA, de Marcelo Cassaro e Eduardo Francisco



Em um futuro próximo, o planeta já terá escapado de uma invasão alienígena, sua tecnologia será altamente avançada, viagens interestelares serão uma realidade e a criação de seres cibernéticos será a solução para a defesa da Terra, bem como para a exploração espacial. Esse é o pano de fundo de Projeto AYLA, a mais recente publicação em quadrinhos do escritor e roteirista Marcelo Cassaro.

O álbum, com pouco mais de 190 páginas, capa dura, e publicado pela editora Jambô, é ilustrado pelo artista Eduardo Francisco. Com um enredo que gira em torno de uma cientista e uma corporação tecnológica empenhados em desenvolver uma androide superpoderosa, um conflito entre duas raças alienígenas inimigas, além da figura de um agente (governamental?) que monitora atividades extraterrestres em nosso solo, este parece ser o melhor trabalho em quadrinhos, depois de Holy Avenger, de Cassaro. 

A narrativa, bem entrelaçada, é dividida em cinco capítulos, mais um epílogo, e apresenta uma ficção científica bem contada e muito bem expressada pelos traços firmes, e em estilo mangá, do desenhista Edu Francisco - como ele assina. Aliás, um simples folhear de páginas causa um impacto bastante positivo aos olhos de quem aprecia bons desenhos, tão bom o resultado final alcançado pelo artista na elaboração das personagens e dos cenários futuristas da HQ.

  


O roteiro, por sua vez, sintetiza bem o trabalho do veterano Marcelo Cassaro, mostrando-se dinâmico, especulativo e repleto de ação. É bem construído e arrematado, além de espalhar, ao longo das páginas, as referências que edificam a obra do melhor representante do gênero mangá e um dos mais competentes quadrinhista do Brasil. Assim, nota-se de maneira explícita sua apreciação pelo gênero literário F.C., bem como pela produção nipônica referente à nona arte e aos animes e, ainda, pela cultura pop em geral. Tudo isso incrustado no universo já estratificado do autor de Espada da galáxia.

Cassaro, com este Projeto AYLA, reafirma a sua familiaridade e experiência com o meio e se firma, ao lado de figuras como Bá e Moon, Mutarelli, Angeli e Laerte - cada qual com seus objetivos e estilos, obviamente - um grande contador e construtor de histórias em quadrinhos, revelando que, se fosse em outras terras, suas produções já teriam alcançado repercussão e visibilidade maiores nos diversos meios artísticos do cenário cultural nacional.
   
Repleto de robôs e artefatos tecnológicos, batalhas devastadoras e seres superpoderosos, este trabalho - inteligente, criativo e gostoso de ler - é mais uma daquelas obras que nos faz perceber que o mercado de HQ do Brasil tem um potencial gigantesco, com artistas altamente competentes, que precisa apenas ser explorado pelas grandes editoras.
   
Por fim, Marcelo Cassaro, juntamente com Projeto AYLA, representam motivo de orgulho para todos os entusiastas pela solidificação de um mercado produtivo e bem fundamentado em narrativas gráficas brasileiras. 


P. S.: Torço para a publicação alcançar vitórias com os troféus HQ MIX e Ângelo Agostini, em 2016.

P. S. 2: Um prólogo ou um texto introdutório seria bem-vindo ao trabalho. Além de uma revisão mais cuidadosa, já que em alguns balões faltam algumas palavras.

P. S. 3: Comprei a edição no Fest Comix, mas infelizmente não consegui um autógrafo...


segunda-feira, 1 de junho de 2015

Você e eu. E só.

Não cabe neste poema
a alegria que tento escrever!
Mas escrevo ainda assim.
Na verdade, o que tem aqui dentro,
em rebuliço e exultação,
não caberia mesmo qualquer explicação,
pois esta prescinde ordem,
e não há razão neste instante
dentro de mim.
Até onde posso descrever,
há eu e você. E só.

Depois disso
minha racionalidade assiste a uma narrativa toda fragmentada
onde desfilam imagens de pernas e corpos nus
braços e abraços que se enroscam
e línguas que se queimam
num toque qualquer

Aí já é noite
o álcool entorpece
cigarros aquecem pulmões suicidas
enquanto um som alto
estremece o nosso filme
a nossa história
e tem dança
e beijos
e mais beijos e abraços

Vem a madrugada
cai uma paulistana garoa
e as pessoas passam
e as luzes dos carros ofuscam a realidade
dentro da noite escura e gelada
e tua voz agora é música
e eu sou todo plateia...

A razão, boquiaberta,
busca simetria,
tenta costurar o sentido
da caoticidade daquelas cenas.
Distingue os pares de olhos,
as duas estrelas da noite,
e para, estupefata,
no ponto de partida.
Onde tudo começou.
Até onde é possível descrever:
Você e eu.
E só.


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Poema pessimista

O mundo, já velho, apodrece
Expondo gangrenadas feridas
Habitadas pelo Verme, que cresce
E as consome, em famintas mordidas.

Pus e sangue coagulado represam as veias
Enquanto um coração pútrido bate, em desespero.
O Verme, insensível, prossegue em sua mórbida ceia
Tendo, nesta podridão, sádico esmero.

Grandes nacos de carne podre abocanha
E devora-os sem compaixão.
À geração futura - esta ganha -
Os restos que caem pelo chão.

Verme gerando Verme a partir da podridão
Ao longo da insana história do mundo.
Que com estertores se debate, agoniza, em vão,
Morrendo num abismo sujo, escuro e fundo.