terça-feira, 13 de junho de 2023

Uma leitura de O soldador subaquático, de Jeff Lemire



Bons autores são aqueles que, a partir do corriqueiro, do ordinário, conseguem extrair algo original, tocante e, ainda, explorar as camadas de profundidade que os nossos conflitos cotidianos encerram. E é justamente isso que Jeff Lemire faz no seu O soldador subaquático - quadrinho canadense de 2012, traduzido por Paulo Cecconi e publicado aqui no Brasil pela editora Mino, em 2016.

Na obra, cujos desenhos também são do roteirista Lemire, vemos a personagem principal, Jack Joseph, às voltas com seu filho prestes a nascer, seu trabalho - que em alguns momentos é mais como uma fuga e, em outros, simultaneamente uma chance de aprofundar-se em seus problemas mais subjetivos -, o medo e ansiedade da esposa grávida e, o que mais incomoda o protagonista: suas memórias, remorsos e incertezas sobre sua própria vida e em relação à figura de seu falecido pai - figura esta que o assombra e o intimida, pois há a possibilidade dele próprio vir a se tornar, no futuro, semelhante a ela. Temos, portanto, um sujeito em desacordo (disjunto) com as possibilidades que o futuro pode lhe oferecer e arraigado, preso, a um passado de perda e dor, que vai se revelando com a passar da narrativa, e que só é de fato compreendido e assimilado quando Jack preenche algumas lacunas em suas memórias. A partir daí, este passa a harmonizar-se, conjuntivamente, com as possibilidades do porvir e, realmente, a viver com sua família.

Dois termos contrários funcionam como base fundamental e núcleo gerador dos sentidos do quadrinho: interioridade versus exterioridade. O primeiro, pode-se afirmar, tem um valor negativo, pois em determinado nível representa o passado que aprisiona em dor e dúvida a personagem; o segundo termo, por sua vez, apresenta-se no texto positivamente - é o futuro e a aceitação do viver, o libertar-se de traumas e memórias ruins. Há todo um movimento narrativo em O soldador subaquático que deixa claro essa passagem de um estado a outro, essa narratividade da trama que num primeiro momento afirma o passado de Jack, depois ele mesmo nega esse pretérito e, por implicação e consequência, já unido com esposa e filho, afirma o contrário - o amanhã, a vida, o futuro. Em textos bem escritos, como é o caso aqui, tal narratividade, bem como esses conteúdos mínimos que geram os sentidos todos, são perceptíveis - como o são, e de forma explícita e visível, a temática e a figurativização da história em sua totalidade.

Quanto a esses dois aspectos, temas que são recobertos por figuras, a HQ é um todo bastante harmonioso e coerente enquanto peça artística e textual. A interioridade, tematizada pelo passado, memórias e remorsos, é recoberta, concretizada, por uma coesa e interessante rede figurativa: o trabalho de soldador subaquático (aquele que desce às profundezas do oceano para soldar, "consertar", o que está danificado); o oceano (lugar de mistérios profundos); o ser solitário em meio às profundidades do mar; o Halloween (figura relacionada a sua infância, à perda e à morte do pai); etc. Tudo isso arranjado, disposto e relacionado, metafórica e simbolicamente, ao eu mais profundo, misterioso, desconhecido do protagonista - mas um eu que aflige, perturba e que, com urgência, precisa ser descoberto, explorado, "consertado", entendido para, enfim, emergir e vir à tona enquanto faceta pessoal.

A exterioridade, tematizada pelas possibilidades do futuro, aceitação de um porvir diferente e livre dos pesos de um pretérito de dor e não superação, e mesmo da possibilidade de repetir as atitudes e idiossincrasias de seu finado progenitor, aparece recoberta, ou figurativizada, principalmente pela gravidez da esposa de Jack, por um antigo relógio dado por seu pai - objeto este que estava perdido no fundo do oceano e que, ao ser redescoberto, simboliza revelação e superação -, e pelo nascimento de seu filho. Tudo, mais uma vez, coeso e coerentemente entrelaçado à história da personagem principal e aos conflitos extremamente íntimos dela.

Relacionando-se a todo esse conteúdo, a todos esses sentidos que são imanentes à narrativa, está a expressividade de um ótimo texto (simples, sem ser superficial; profundo, sem caracteres apelativos ou melodramáticos) e excelentes painéis desenhados individualmente ou dispostos em páginas duplas. São, pois, o verbal e o não verbal, a palavra e a imagem que, inter-relacionadas, dão ritmo, dinamismo e ancoram pessoas, espaços e tempos às poucas personagens da história, além de gerar vários efeitos de sentido de realidade à obra.

Assim, expressão e conteúdo relacionam-se semissimbolicamente, como ocorre em artes sincréticas - que são aquelas em que variadas linguagens (neste caso o texto verbal e o desenho) se apresentam indissociavelmente; são interdependentes e concorrem, sincreticamente, juntas, para a construção de sentidos e significados que vão se enriquecendo mais e mais à medida que o leitor vai se apropriando da história narrada. Concretizando, pois, níveis de leitura, estruturação de sentido, bastante profundos e abstratos e que emanam dos contrários (já mencionados) interioridade versus exterioridade, numa narrativa de grande apuro artístico.

O soldador subaquático é uma história em quadrinhos que coaduna vários adjetivos positivos: é sensível, bonita, interessante, inteligente etc. e que, como afirmado no início deste texto, consegue extrair do ordinário dia a dia reflexões originais e tocantes. E é por isso, portanto, que deve ser apreciada não apenas pelos leitores da Nona arte, mas da Arte em geral. Jeff Lemire, assim como tantos outros bons autores, deve ser lido e apreciado por todos que cultivam o gosto por histórias sensíveis e que se fundamentam na sensibilidade do (que é) ser humano.