segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Uma discussão necessária sobre o verdadeiro horror em Dylan Dog

Inglaterra, Londres. Craven road, n° 7. É nesse endereço que Dylan Dog, o Investigador do pesadelo, trabalha há mais de três décadas. Criada em 1986 pelo italiano Tiziano Sclavi, a personagem de quadrinhos é sucesso de público e crítica no cenário artístico e cultural da Itália, com suas revistas publicadas periodicamente pela Sergio Bonelli Editore desde então.


Suas histórias, que têm por base o terror e horror, além de investigações que pendem para o lado do sobrenatural e boas doses de ação, tocam temas que dialogam com a Filosofia, a Literatura, a Política, Metafísica, Ciência e tudo o mais que tange às humanidades e ao homem em sociedade. Somando-se tudo isso, o resultado não poderia ser outro: inteligentes e criativas histórias que enriquecem a Nona arte.

No entanto, e talvez por ser criado a partir de um cenário global que via a mulher como um ser frágil e suscetível aos desejos dos homens, toda essa luz faz projetar uma densa sombra que muitos parecem não ver ou simplesmente querem ignorar e não discutir, que é o fato de Dylan Dog assediar mulheres e ser, muitas vezes, machista em suas tramas. E não apenas ele, mas Groucho - seu singular assistente e amigo - também.

O assunto é polêmico e, para muitos, controverso. Mas é uma realidade! E embora se diga, ingenuamente, que Dylan se apaixona facilmente pelas várias mulheres que transitam pelas suas páginas, ao lermos com um pouco mais de atenção podemos notar que isso não passa de um eufemismo, uma tentativa de suavizar e talvez mascarar a dura verdade: o assédio, o machismo e a falta de ética profissional dele para com aquelas que buscam sua ajuda.

Óbvio que em algumas histórias do Old boy, como ele é chamado, isso aparece de modo mais explícito, mais incisivo até. Assim, na primeira edição da personagem, O despertar dos mortos-vivos (n° 1, editora Record, 1991) chega a causar asco a postura de DyD, e Groucho, diante da mulher que busca por seus serviços. As páginas 22 e 23 expõem, textual e visualmente, o que se tornaria uma constante na série da personagem:

DyD: [...] "Amava seu marido?"
Ela: "Não." [...] "Me perguntou isso porque pensa que inventei tudo e que se trata de um homicídio comum, não é?"
DyD: "Não. Perguntei isso porque jamais poderia cortejar uma viúva inconsolável."
Ela: "??"
DyD: [Se aproximando dela] "Em suma, você me agrada muito. Não seja tímida, pode dizer obrigada."
Ela: "Obri... obrigada?!"
[E aí ele a beija]
DyD: "Esclarecido este ponto fundamental, vamos ao trabalho. Como se diz, primeiro o prazer e depois o dever."


Para a presente discussão foram lidas as seguintes edições: a acima (n° 1, da Record); as três publicadas pela Editora Lorentz em 2017; os dez números publicados como Série Clássica pela Mythos Editora; e os seis números da Nova Série - também da Mythos. Um total de vinte (20) histórias e uma estarrecedora sucessão de "cantadas", assédio, machismo, insinuações e ações nada éticas e profissionais que causam estranhamento, desconforto e ojeriza.

Horror paradise, a primeira publicação da Mythos Editora, que marca o retorno periódico das publicações de DyD às bancas brasileiras e que inicia o que se denominou de Série Clássica - com histórias mais antigas do Detetive do pesadelo - é um pouco mais sutil, quase imperceptível, quanto ao machismo da personagem: ele recebe uma fita VHS e nela reconhece, pelas nádegas (página 63), sua cliente: "Hmm... parece mesmo Vanessa!"


O próprio fato de serem mulheres, predominantemente, a precisarem de ajuda e apoio na grande maioria das histórias de Dylan Dog já é, em si, um motivo de preocupação. É como se apenas pessoas do sexo feminino fossem fracas e necessitadas; enquanto que apenas homens, e héteros, pudessem ajudá-las. Há nitidamente um esteriótipo, fruto de sociedades desiguais e patriarcais, que se sustenta na inferiorização da mulher - o que não cabe mais nos dias de hoje!

E isso muitas vezes é tão "natural", tão comum num tipo de sociedade como a nossa, que a própria Mythos Editora - no texto de apresentação da personagem aos leitores - fez questão de estampar na contracapa de suas publicações da Série Clássica os seguintes dizeres:

[...] "E SE VOCÊ É UMA BELA GAROTA, MELHOR AINDA: DYLAN DOG SE APAIXONA POR TODAS AS CLIENTES."

Não é que ele se "apaixona". Antes, porém, é o fato dele ser homem e, enquanto tal, se considerar, muitas vezes, acima, superior às suas clientes. Talvez apenas o macho, primitivo, buscando saciar suas irrefreáveis vontades diante da "presa" submissa e inferior. Este, ao leitor crítico e atento, parece ser o verdadeiro horror em Dylan Dog.

Outro ponto preocupante, e que esfarela o argumento ingênuo do "apaixonado" DyD é o fato de que, na maioria das vezes, suas vítimas (ou clientes) estarem sempre em situações de fragilidade e suscetibilidade emocional. Seja pela perda de alguém, ou por alguma perturbação mental, ou mesmo alguma situação de injustiça profissional ou social. Não importa, Dylan sempre contorna tais fragilidades, as conquista e se relaciona sexualmente com suas clientes (vítimas, nesses casos).

Isso é bastante explícito na edição 3 da Série Clássica (A rainha das trevas) e no número 6 da Nova Série (Na fumaça da batalha), também publicada pela Mythos - com histórias mais atuais. Em ambos os casos nos é mostrado mães extremamente fragilizadas emocionalmente em relação aos problemas com seus filhos e, na tentativa de resolvê-los, recorrem ao Investigador do pesadelo e este, mais uma vez, se usa de sua posição e se satisfaz sexualmente com ambas; ou, como dizem, "se apaixona por elas".

Inquieta também observar que tais relações se dão tanto com mulheres mais maduras, como nos casos já citados, quanto com jovens recém-saídas da adolescência - como visto em O marca vermelha (Série Clássica, n° 2, Mythos). É espantoso, mas o raciocínio é bastante válido: toda fêmea, apenas por ser fêmea, perece ser vista como objeto de satisfação sexual pela personagem.

Essa visão de presa, de objetificação e saciação sexual é brilhante e metaforicamente abordada em O coração dos homens, Nova Série n° 5 (Mythos Editora). É uma viagem ao eu de Dylan Dog e a sua relação com as mulheres. Um eu egoísta e monstruoso que ofusca o seu lado bom.




Com roteiro de Roberto Recchioni e a "estranha" e instigante arte de Piero Dall'agnol, vemos um Dylan confrontando-se, e sendo derrotado, pelo seu eu interior: um eu doente que violenta, aprisiona e se alimenta do coração feminino; que agride, que fere e que devora a mulher. Uma edição corajosa e imprescindível por expor, mesmo que numa metáfora, o modo, inaceitável para o nosso presente histórico, como DyD vê o sexo oposto: um mero objeto de prazer sexual.




Esperamos que esta Nova Série venha para, além de inserir nosso Old boy à modernidade e garantir maior diversidade ao universo fictício da personagem, acabar completamente com tais atitudes do detetive. Que Dylan Dog possa se regenerar desta doença e enfim amadurecer, vencendo este lado ruim que teima em sobressair-se em suas aventuras. E que esta sombra, o verdadeiro e real horror presente nos quadrinhos dele, não venha a apagar a genialidade criativa da ímpar criação de Tiziano Sclavi.


P. S.: Dylan também se relaciona com as mulheres de forma lírica e bonita, como na edição 7 da Série Clássica - Alguém chama do espaço (Mythos Editora). Mas, depois das vinte histórias lidas, isso parece ser exceção.

P. S. 2: Lemos e colecionamos Dylan Dog! Mas não temos o direito de ignorar essas atitudes execráveis da personagem. E, justamente por sermos leitores de DyD, temos o dever de apontar e discutir o assunto, desejando que isso mude!