sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Hino à Liberdade

liberdade:
uns e outros? não. todos
lutam (e matam) por ela
ante e antes de toda sombra

liberdade!
importa, pois, é tê-la
vivê-la
recuperá-la - se perdida ou
esquecida

liberdade!
uns mais outros (todos) gritam...
levando sua chama
a todo e qualquer breu

liberdade!
imenso fogaréu a aquecer
vagos e escuros corações
reféns de injustiças e
exigentes dela pra ser e lutar



P. S. : A data é especial: a justa soltura do ex-presidente Lula!

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Uma rara e vigorosa flor na Nona Arte


Da fictícia Garden City, um jardim-metrópole que enfeita algum canto dos EUA e cujas ruas recebem bonitos nomes de espécies de flores, surge Júlia Kendall, a  crimonóloga que, juntamente com o Departamento de Polícia da cidade, trabalha arduamente na investigação e solução dos variados tipos de crimes que acometem a vida dos cidadãos.

Saída da fértil imaginação do italiano Giancarlo Berardi (1949), lá pelos idos de 1998, Júlia - além de atuar junto às investigações criminais - leciona numa importante Universidade da cidade a disciplina de Criminologia. É solteira por opção, calculista, racional, educada e amável. Forte e decidida, madura e sensível, é extremamente humana, ética e profissional num mundo cada vez mais duro, frio e violento.


De compleição frágil - mas de caráter determinado -, resistente ao uso de armas (prefere um rijo e pesado cinzeiro de alabastro na bolsa), luta, insiste e resiste num cenário quadrinhístico dominado por personagens do sexo masculino. É, pois, uma vigorosa e rara flor de resistência em meio à dureza e aspereza da sociedade.

Suas histórias são densas, inteligentes e intrincadas; mas líricas, críticas e bastante sensíveis aos diversos temas que permeiam nossa humanidade e a nossa vida social. Pertencentes ao gênero policial, são repletas de crimes, investigações, ponderações psicológicas, sociais, filosóficas etc. Nelas, conflitos pessoais, dramas diários, pitadas de romance e pilhérias coadunam-se a tudo isso para a genialidade e grandeza das tramas.

Depois de duas décadas nas bancas italianas, sob os auspícios da Sergio Bonelli Editore, e no cenário de quadrinhos brasileiro há mais de dez anos, Júlia difere de qualquer outra publicação do mainstream publicada periodicamente por aqui. Isso porque em J. Kendall - Aventuras de uma criminóloga Júlia é realmente a protagonista das histórias e, mesmo estando cercada de homens, ela transita com autonomia e força, se impondo num universo quase sempre bruto, insensível, machista, patriarcal. Nada submissa, diríamos que - para usar um termo em voga no momento - Júlia é empoderada e, talvez, até mesmo feminista, pois quer respeito e os mesmos direitos que apenas os homens parecem possuir, mas que, em sociedades progressistas e democráticas, são de todos.


Atingindo a expressiva marca de 142 edições publicadas pela Editora Mythos - entre publicações mensais, posteriormente bimestrais e alguns especiais, acompanhando os altos e baixos de um mercado quadrinhístico que busca incessantemente consolidar-se -, e apesar de reconhecidamente vir a ser considerado um gibi de grande qualidade, vencendo, inclusive, o HQMIX de 2010 na categoria de Publicação de Aventura/Terror/Ficção, a criação de G. Berardi ainda é pouco conhecida/divulgada/discutida entre os leitores de HQs - principalmente entre os  mais jovens.

E num universo de revistas em quadrinhos com qualidade duvidosa, que perpetuam quase doentiamente estereótipos, e cujo predomínio se dá pela presença massiva e ostensiva de personagens do sexo masculino, e héteros, J. Kendall - Aventuras de uma criminóloga é uma bem-vinda ilha de inteligência e beleza, um verdadeiro primor dos quadrinhos. Ou, para ficarmos na ambientação de Garden City: uma forte e rara flor no âmbito da Nona Arte.



P. S.: As capas das publicações de Júlia são sempre impressionantes. A genialidade criativa é do artista Cristiano Spadoni.

P. S. 2: Como é comum nas criações da Bonelli, Júlia tem as feições de uma personalidade americana. No caso, da atriz Audrey Hepburn.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Uma discussão necessária sobre o verdadeiro horror em Dylan Dog

Inglaterra, Londres. Craven road, n° 7. É nesse endereço que Dylan Dog, o Investigador do pesadelo, trabalha há mais de três décadas. Criada em 1986 pelo italiano Tiziano Sclavi, a personagem de quadrinhos é sucesso de público e crítica no cenário artístico e cultural da Itália, com suas revistas publicadas periodicamente pela Sergio Bonelli Editore desde então.


Suas histórias, que têm por base o terror e horror, além de investigações que pendem para o lado do sobrenatural e boas doses de ação, tocam temas que dialogam com a Filosofia, a Literatura, a Política, Metafísica, Ciência e tudo o mais que tange às humanidades e ao homem em sociedade. Somando-se tudo isso, o resultado não poderia ser outro: inteligentes e criativas histórias que enriquecem a Nona arte.

No entanto, e talvez por ser criado a partir de um cenário global que via a mulher como um ser frágil e suscetível aos desejos dos homens, toda essa luz faz projetar uma densa sombra que muitos parecem não ver ou simplesmente querem ignorar e não discutir, que é o fato de Dylan Dog assediar mulheres e ser, muitas vezes, machista em suas tramas. E não apenas ele, mas Groucho - seu singular assistente e amigo - também.

O assunto é polêmico e, para muitos, controverso. Mas é uma realidade! E embora se diga, ingenuamente, que Dylan se apaixona facilmente pelas várias mulheres que transitam pelas suas páginas, ao lermos com um pouco mais de atenção podemos notar que isso não passa de um eufemismo, uma tentativa de suavizar e talvez mascarar a dura verdade: o assédio, o machismo e a falta de ética profissional dele para com aquelas que buscam sua ajuda.

Óbvio que em algumas histórias do Old boy, como ele é chamado, isso aparece de modo mais explícito, mais incisivo até. Assim, na primeira edição da personagem, O despertar dos mortos-vivos (n° 1, editora Record, 1991) chega a causar asco a postura de DyD, e Groucho, diante da mulher que busca por seus serviços. As páginas 22 e 23 expõem, textual e visualmente, o que se tornaria uma constante na série da personagem:

DyD: [...] "Amava seu marido?"
Ela: "Não." [...] "Me perguntou isso porque pensa que inventei tudo e que se trata de um homicídio comum, não é?"
DyD: "Não. Perguntei isso porque jamais poderia cortejar uma viúva inconsolável."
Ela: "??"
DyD: [Se aproximando dela] "Em suma, você me agrada muito. Não seja tímida, pode dizer obrigada."
Ela: "Obri... obrigada?!"
[E aí ele a beija]
DyD: "Esclarecido este ponto fundamental, vamos ao trabalho. Como se diz, primeiro o prazer e depois o dever."


Para a presente discussão foram lidas as seguintes edições: a acima (n° 1, da Record); as três publicadas pela Editora Lorentz em 2017; os dez números publicados como Série Clássica pela Mythos Editora; e os seis números da Nova Série - também da Mythos. Um total de vinte (20) histórias e uma estarrecedora sucessão de "cantadas", assédio, machismo, insinuações e ações nada éticas e profissionais que causam estranhamento, desconforto e ojeriza.

Horror paradise, a primeira publicação da Mythos Editora, que marca o retorno periódico das publicações de DyD às bancas brasileiras e que inicia o que se denominou de Série Clássica - com histórias mais antigas do Detetive do pesadelo - é um pouco mais sutil, quase imperceptível, quanto ao machismo da personagem: ele recebe uma fita VHS e nela reconhece, pelas nádegas (página 63), sua cliente: "Hmm... parece mesmo Vanessa!"


O próprio fato de serem mulheres, predominantemente, a precisarem de ajuda e apoio na grande maioria das histórias de Dylan Dog já é, em si, um motivo de preocupação. É como se apenas pessoas do sexo feminino fossem fracas e necessitadas; enquanto que apenas homens, e héteros, pudessem ajudá-las. Há nitidamente um esteriótipo, fruto de sociedades desiguais e patriarcais, que se sustenta na inferiorização da mulher - o que não cabe mais nos dias de hoje!

E isso muitas vezes é tão "natural", tão comum num tipo de sociedade como a nossa, que a própria Mythos Editora - no texto de apresentação da personagem aos leitores - fez questão de estampar na contracapa de suas publicações da Série Clássica os seguintes dizeres:

[...] "E SE VOCÊ É UMA BELA GAROTA, MELHOR AINDA: DYLAN DOG SE APAIXONA POR TODAS AS CLIENTES."

Não é que ele se "apaixona". Antes, porém, é o fato dele ser homem e, enquanto tal, se considerar, muitas vezes, acima, superior às suas clientes. Talvez apenas o macho, primitivo, buscando saciar suas irrefreáveis vontades diante da "presa" submissa e inferior. Este, ao leitor crítico e atento, parece ser o verdadeiro horror em Dylan Dog.

Outro ponto preocupante, e que esfarela o argumento ingênuo do "apaixonado" DyD é o fato de que, na maioria das vezes, suas vítimas (ou clientes) estarem sempre em situações de fragilidade e suscetibilidade emocional. Seja pela perda de alguém, ou por alguma perturbação mental, ou mesmo alguma situação de injustiça profissional ou social. Não importa, Dylan sempre contorna tais fragilidades, as conquista e se relaciona sexualmente com suas clientes (vítimas, nesses casos).

Isso é bastante explícito na edição 3 da Série Clássica (A rainha das trevas) e no número 6 da Nova Série (Na fumaça da batalha), também publicada pela Mythos - com histórias mais atuais. Em ambos os casos nos é mostrado mães extremamente fragilizadas emocionalmente em relação aos problemas com seus filhos e, na tentativa de resolvê-los, recorrem ao Investigador do pesadelo e este, mais uma vez, se usa de sua posição e se satisfaz sexualmente com ambas; ou, como dizem, "se apaixona por elas".

Inquieta também observar que tais relações se dão tanto com mulheres mais maduras, como nos casos já citados, quanto com jovens recém-saídas da adolescência - como visto em O marca vermelha (Série Clássica, n° 2, Mythos). É espantoso, mas o raciocínio é bastante válido: toda fêmea, apenas por ser fêmea, perece ser vista como objeto de satisfação sexual pela personagem.

Essa visão de presa, de objetificação e saciação sexual é brilhante e metaforicamente abordada em O coração dos homens, Nova Série n° 5 (Mythos Editora). É uma viagem ao eu de Dylan Dog e a sua relação com as mulheres. Um eu egoísta e monstruoso que ofusca o seu lado bom.




Com roteiro de Roberto Recchioni e a "estranha" e instigante arte de Piero Dall'agnol, vemos um Dylan confrontando-se, e sendo derrotado, pelo seu eu interior: um eu doente que violenta, aprisiona e se alimenta do coração feminino; que agride, que fere e que devora a mulher. Uma edição corajosa e imprescindível por expor, mesmo que numa metáfora, o modo, inaceitável para o nosso presente histórico, como DyD vê o sexo oposto: um mero objeto de prazer sexual.




Esperamos que esta Nova Série venha para, além de inserir nosso Old boy à modernidade e garantir maior diversidade ao universo fictício da personagem, acabar completamente com tais atitudes do detetive. Que Dylan Dog possa se regenerar desta doença e enfim amadurecer, vencendo este lado ruim que teima em sobressair-se em suas aventuras. E que esta sombra, o verdadeiro e real horror presente nos quadrinhos dele, não venha a apagar a genialidade criativa da ímpar criação de Tiziano Sclavi.


P. S.: Dylan também se relaciona com as mulheres de forma lírica e bonita, como na edição 7 da Série Clássica - Alguém chama do espaço (Mythos Editora). Mas, depois das vinte histórias lidas, isso parece ser exceção.

P. S. 2: Lemos e colecionamos Dylan Dog! Mas não temos o direito de ignorar essas atitudes execráveis da personagem. E, justamente por sermos leitores de DyD, temos o dever de apontar e discutir o assunto, desejando que isso mude!







domingo, 7 de julho de 2019

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Angola Janga: um quadrinho didático, histórico e de resistência

Algumas obras de arte nos causam impressões tão fortes, nos marcam tão profundamente que não há outra alternativa senão discuti-las, comentá-las, indicá-las, enfim apresentá-las ao máximo de pessoas que conseguimos. Angola Janga - Uma história de Palmares (2017, editora Veneta, 432 páginas) é uma dessas obras.



Escrita e desenhada por Marcelo D' Salete e merecidamente vencedora de diversas premiações, é um quadrinho que apresenta uma das infinitas histórias acerca do maior quilombo em terras brasileiras, Palmares - e, igualmente, o maior e mais estruturado ambiente de resistência de negros escravizados do Brasil colonial.

Suas centenas de páginas, em preto e branco, são repletas de belíssimas e cuidadosas ilustrações, de traço fino e bastante esmerado até mesmo nos pequenos detalhes. Crueza e lirismo se materializam simultaneamente nos desenhos, enquanto estes encadeiam-se numa narrativa vigorosa que alterna entre o presente e o passado das suas personagens. Há, na mesma medida, força e dinamismo nas cenas, e, inclusive, na confecção dos cenários que ora nos mostram a vastidão e a vivacidade das matas e florestas, ora nos revelam o início das vilas e do frio sistema industrial dos engenhos.

A capa de Angola Janga figurativiza bem o seu conteúdo: enfatiza não as personagens e suas lutas, antes, no entanto, a força, a existência e a resistência de Palmares - esta sim a personagem protagonista da obra. Incrustada nela, joias como as figuras de Zumbi, Ganga Zumba, Acotirene, Soares fazem o quilombo Palmares brilhar e significar ainda mais. Apesar de conflitos internos na sua organização, este mostra-se bem estruturado e organizado para a resistência, luta e subsistência dos negros. É, ainda, a esperança e um paraíso ante o inferno imposto pela escravidão e matança perpetrados pela Coroa portuguesa, pelos senhores de engenho, pelos capitães do mato, pelos religiosos, pelos bandeirantes - todos demônios insaciáveis.

Referente ao trabalho com a linguagem quadrinhística, é interessante observar que esta é usada com muita propriedade pelo autor, o que é visível no ritmo imposto pelas sequências e pelos diferenciados tamanhos e formatos dos quadros, pelos desfechos dos capítulos, em razão da plasticidade e do uso das onomatopeias, bem como em relação ao requadro levemente diferenciado indicativo da alternância do tempo narrativo. O espaço geralmente empregado pelo narrador é usado como continuação do discurso direto das personagens, o que é um diferencial no uso do recurso e na passagem das cenas. No mais, apenas o balão, nos momentos de gritos, poderia ser explorado de maneira mais dinâmica, mas o mesmo efeito de sentido é obtido com a alteração da fonte do texto.

Coadunado ao brilhantismo estético da bela edição, é importante ressaltar seu caráter didático e histórico. É uma verdadeira e bem dada aula introdutória sobre o que foi o quilombo dos Palmares, sobre o início da escravização e exportação de povos negros, como a Colônia foi edificada às custas da vida de índios e escravizados, como agiam os senhores de engenho, a Igreja, os políticos daquele período, como o negro era objetificado, coisificado, como eram os cenários, as vestimentas, o linguajar, os fazeres etc. dos sujeitos inseridos naquele contexto.

Paralelo a esse didatismo inerente à HQ, há a luta por ressignificar a figura e a história do negro no Brasil. É a História sendo contada não mais pelo europeu colonizador e escravista, mas pelo escravizado - porém não aquele que apenas apanhou e trabalhou na fundação do país, mas sim aquele que resistiu, lutou pela sobrevivência dos seus, guerreou e matou por liberdade, por sua cultura e modo de existir. E que, poucas mas significativas vezes, se fortaleceu e venceu.

É um outro viés narrativo, outro olhar - não cabisbaixo, passivo, "do escravo" amansado e domesticado, mas um olhar furioso de quem foi privado do direito de ser humano, um olhar que resiste, luta e anseia por liberdade e paz. São olhos que revelam astúcia, arte e inteligência em fortificar-se, estruturar-se, defender-se e atacar o inimigo. São olhos onde faíscam uma excelência e um desejo de autogovernar-se.

Dividida em 11 capítulos, cada qual com um texto histórico e contextualizador de abertura, chama a atenção, principalmente: Os selvagens; Encontros; O abraço; e Passos na noite. O primeiro por nos fazer refletir sobre quem realmente eram os selvagens: o nativo, os negros ou os responsáveis pelo seu quase extermínio? O segundo por mostrar um pouco mais detidamente o dia a dia num mocambo. O outro por ser o clímax da narrativa, mostrando a captura do líder Zumbi; e Passos na noite, o último, por amarrar toda a história e estabelecer um importante diálogo entre a nossa sociedade, hoje, e a realidade de resistência suscitada pelas experiências de Palmares. Todos extremamente ricos em lirismo, significados, sugestividade e expressividade. Uma introdução rápida e extras, como notas e um glossário, complementam a riqueza da obra.

Publicada no ano de 2017, Angola Janga - Uma história de Palmares venceu os principais prêmios para o seu segmento: o Jabuti, o HQMIX e o Grampo (todos em 2018). Didática, de luta e de resistência, constitui-se como marco para a cena quadrinhística brasileira e, principalmente, para a comunidade negra em geral. É, pois, uma bandeira crítica de informação, ressignificação e conscientização do que foi o quilombo de Palmares.

P. S. : Angola Janga foi selecionada para ser distribuída às escolas, em 2018, por meio do Programa Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário).

terça-feira, 25 de junho de 2019

Do eu pra mim

Ei, você
que tá todo grilado
pensando
adoidado
na vida

Cismado com o tempo,
de onde veio,
pra onde vai,
que sem freio
solta o pensamento
e uma porção de ais

Que se perde
aflito
em divagações
sobre o infinito
e a existência...

Aprende
essa lição
que é assim
doída pra todo mundo
qu' inclusive
doeu pra mim:

S' aquieta
e aproveita (ess)a vida
qu' é curta
e sofrida
e uma só

E viva
conviva
com viva
tal vida.

terça-feira, 4 de junho de 2019

dança primeva

nessa dança confusa
na qual
nada se usa
a gente bota o corpo
pra mexer e remexer
todo torto
num subir e descer
ritmado
espasmódico
de um prazer primitivo
ilógico
puro sexo!
e calor
tudo sem nexo
como nosso amor

sábado, 1 de junho de 2019

Lição

Ei, aluno
preste atenção
porque tudo aqui
é ARMA e MUNIÇÃO
pra você se entrincheirar
nos problemas da vida
e lutar
com Educação.

O pessoal aqui da frente,
a galera do fundão,
os do canto... tenham em mente
que nada aqui é em vão!
E aproveitem esta sala,
este giz, estes livros, esta lousa...
e principalmente esta fala
que mesmo cansada,
insiste
e não se cala!

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Da necessidade de se tratar como Arte a 9ª Arte!

A duras penas, numa batalha que atravessou o século XX, os quadrinhos se consolidaram, entre os críticos e a sociedade em geral, como a 9ª Arte. Depois de décadas enfrentando preconceitos de toda ordem, sendo marginalizados e apartados do mainstream artístico-cultural, enfim as histórias em quadrinhos tomaram definitivamente os museus, as grandes exposições, programas de rádio e TV, as feiras culturais e literárias, as premiações e os eventos relacionados ao mercado editorial do país.

No entanto, muitas editoras parecem não reconhecer que, enquanto Arte, as HQs devem, obrigatoriamente, receber um tratamento de Arte - o que significa, no mínimo, uma produção editorial com acabamento de qualidade, isto é: atenciosas tradução e adaptação, passando por uma cuidadosa impressão e, principalmente, por uma REVISÃO competente, esmerada e profissional do produto a ser lançado.

Tal como a literatura, a música, o cinema, o teatro etc. as narrativas gráficas, ou simplesmente os gibis, além de merecedoras, exigem um tratamento à altura da conquista de seu status de Arte. Dizemos isso porque, mês a mês, uma enxurrada de publicações tomam as bancas de jornais, livrarias e lojas do Brasil - são revistas, encadernados, graphic novels lançadas num ritmo intenso, frenético, industrial. Um ritmo que, apesar dos esforços de grande parte dos profissionais e dos editores, não se reflete, na maioria das vezes, na qualidade editorial do produto final que chega às mãos dos leitores.

Isso, além de inadmissível, atenta contra uma estética que, até o presente momento, ocupa um espaço gigantesco no MIS (Museu da Imagem e do Som) com a megaexposição Quadrinhos - um dos maiores feitos em relação às narrativas sequenciais em terras brasileiras -, além de ganhar espaço em um dos mais importantes programas sobre arte da TV Cultura, o Metrópolis, com indicações de quadrinhos para serem conhecidos pelo público.

Assim, após a desagradável e vexaminosa polêmica envolvendo a editora Panini e a republicação da obra Sandman, do escritor Neil Gaiman (em pleno ano 2019 e em comemoração aos trinta anos dessa criação singular no universo quadrinhístico), lemos, aleatoriamente, 20 títulos - os mais variados possíveis em suas temáticas: bang-bang, super-heróis, infantil, fantasia, ficção científica, terror e horror - das principais editoras de HQs do país: Panini, Culturama, Mythos, JBC e Pipoca e Nanquim,  englobando revistas mensais simples (encontradas em bancas de jornais), encadernados (edições com um acabamento mais rico) e edições consideradas de luxo (com capa dura e voltadas às livrarias).

Desse universo de 20 publicações lidas, todas recentes, chegamos a um resultado preocupante: 16 títulos (80% do total!) apresentam problemas quanto à revisão! Problemas esses GROSSEIROS, que seriam evitados por uma última leitura atenta do texto final. Além disso, dentre as editoras que publicaram tais quadrinhos, com exceção da JBC, todas entregaram um produto final com a qualidade editorial comprometida - o que é inadmissível, tendo em vista o alto preço praticado pelo mercado atual do segmento.

As cinco editoras responsáveis pelas publicações são: Panini (com seis HQs lidas), Mythos (com dez edições na lista), Culturama (com dois quadrinhos lidos), JBC (com um produto) e Pipoca e Nanquim (também com um produto). Quanto aos títulos, com a respectiva data de lançamento, editora e ordem de leitura, seguem na lista abaixo:

1- Pateta n° 0 (2019, Culturama - SEM PROBLEMAS);

2- Dylan Dog - Nova Série n° 4 (2019, Mythos);

3- O Velho Logan n° 32 (2019, Panini - SEM PROBLEMAS);

4- O Velho Logan n° 33 (2019, Panini);

5- Tex Willer n° 1 (2019, Mythos);

6- Tex Willer n° 2 (2019, Mythos);

7- Dylan Dog - Nova Série n° 1 (2018, Mythos - SEM PROBLEMAS);

8- Dylan Dog - Nova Série n° 2 (2019, Mythos);

9- Noites de Trevas: Metal n°1 (2018, Panini);

10- Dragonero n° 1 (2019, Mythos);

11- Dylan Dog - Nova Série n° 3 (2019, Mythos);

12- Batman: Cavaleiro Branco n° 7 (2019, Panini);

13- Tex Platinum n° 16 (2018, Mythos);

14- Eight - Forasteiro (2015, Panini com a Stout Club);

15- Heavy Metal - Black & White n° 1 (2019, Mythos);

16- Tex - Graphic Novel n° 1 (2016, Mythos);

17- Nijigahara Holograph - As ilusões de Inio Asano (2016, JBC - SEM PROBLEMAS);

18- Pateta n° 1 (2019, Culturama);

19- Marada - A Mulher-Lobo (2018, Pipoca e Nanquim); e

20- O retorno de Wolverine n° 1 (2019, Panini).

De acordo com a lista acima, temos: 2 quadrinhos da editora Culturama; 10 títulos da editora Mythos; 6 publicações da editora Panini; 1 da editora Pipoca e Nanquim; e 1 da editora de mangás JBC. A partir disso, podemos ainda classificar tais publicações, de acordo com o seu acabamento, em:

Revistas simples:  Pateta; O Velho Logan; Batman: Cavaleiro Branco. (5 títulos, com preços variando de 6 a 11 reais);

Encadernados ou edições com um melhor acabamento: Dylan Dog - Nova Série; Tex Willer; Noites de Trevas: Metal; Dragonero; Tex Platinum; Eight - Forasteiro; Heavy Metal - Black & White; Tex - Graphic Novel; Nijigahara Holograph; e O retorno de Wolverine. (14 títulos, com preços variando de 14 a 34 reais);

Edição de luxo: Marada - A Mulher-Lobo. (1 título, com valor acima de 50 reais).

Como já afirmado, todos os títulos apresentados neste texto são atuais, ou seja, são frutos de um mercado consolidado que, apesar das dificuldades sempre presentes, é experiente e está em constante expansão. Todos, igualmente, mostram um bom acabamento gráfico, mas esbarram na qualidade da revisão final do texto - talvez pela falta de mais profissionais na equipe editorial das redações ou, até mesmo, pelo ritmo cada vez mais intenso de publicações. Assim, custa-nos apontar, mas, com exceção de Pateta nº 0, Dylan Dog - Nova Série nº 1, o mangá Nijigahara Holograph - As ilusões de Inio Asano e O Velho Logan n° 32 (ou seja, APENAS 20% do material lido), TODAS as outras HQs da lista têm problemas de revisão.

Abaixo, fotos dos quadrinhos, com destaque aos problemas encontrados na edição:

Dylan Dog - Nova Série nº 2: "Alguns atuações..."
Tex Willer nº 2: Falha na editoração do balão

Dylan Dog - Nova Série nº 2: Não há crase em "À sargento..."

O Velho Logan nº 33: Faltou vírgula entre "Ô amigão..."

Tex Willer nº 1: Sobrou borrões e faltou hífen em "Bom senso" 



Dylan Dog - Nova Série nº 2: Falha em "À irmãe na qual..."

Dylan Dog - Nova Série nº 2: Falha em "E quem fim levaram?"

Dylan Dog - Nova Série nº 2: Falha na concordância em "O direito... Escritos"

Noites de Trevas: Metal nº 1: Faltou separar "Agente"

Dragonero nº 1: Borrões e mais borrões...

Dragonero nº 1: Borrões e mais borrões...

Dragonero nº 1: Borrões e mais borrões...

Dylan Dog - Nova Série nº 3: Excesso de pontuação em "Universo.!"

Dylan Dog - Nova Série nº 3: Falha em "FIQUEI aí, eu abro!"

Batman: Cavaleiro Branco n° 7: Faltou separar o "porque"

Tex Platinum n° 16: Trema em "agüentar"

Tex Platinum n° 16: Hífen em "dia-a-dia"

Tex Platinum n° 16: Trema em "tranqüilos"

Tex Platinum n° 16: Acento em "pára"

Eight - Forasteiro: Indecisão na grafia de EIGHT

Eight - Forasteiro: Indecisão na grafia de EIGHT ("EIGTH")

Heavy Metal - Black & White n°1: Se trata DE, não "EM"

Heavy Metal - Black & White n° 1: Faltou separar "outrosmundos"

Heavy Metal - Black & White n° 1: Hífen solto em "-Este solo!"

Heavy Metal - Black & White n° 1: Falha em "...sobre do que aconteceu."

Tex - Graphic Novel n° 1: Falha em "do jeito quer você os arrumou!"

Pateta  n° 1: Faltou separar "nuncapescamos"

Marada - A Mulher-Lobo: Problemas com a vírgula em "...como, suspeito,..."

Marada - A Mulher-Lobo: Problema de concordância em "tudo isso... e a liberdade... será de vocês."

Marada - A Mulher-Lobo: Faltou duplicar o hífen na troca de linha em "Mulher-/Lobo"

Dylan Dog - Nova Série nº 4: Falha em "na vida nos outros..."

Dylan Dog - Nova Série nº 4: Faltou acento grave em "...a mão de obra..."

Dylan Dog - Nova Série nº 4: Faltou um QUE "Não vê eu estou no..."

O retorno de Wolverine n° 1: Faltou hífen em "bom senso"


Como podemos perceber, não se trata de erros sutis, passíveis de longas discussões gramaticais entre especialistas, mas sim de deslizes GROSSEIROS, extremamente visíveis, que beiram o descaso. São, pois, desvios CRASSOS que assustam pela quantidade e insistência em tantas publicações.

O leitor atual de quadrinhos, colecionador e amante da linguagem quadrinhística, paga pequenas fortunas mensais pelas suas edições. Pequenas fortunas que, espera-se, garantam a qualidade total dos quadrinhos adquiridos em bancas ou livrarias. Pequenas fortunas que vão para grandes editoras (sedentas por vender cada vez mais!), MAS QUE NÃO SÃO REPASSADAS QUANDO DA FINALIZAÇÃO DO MATERIAL PUBLICADO.

Quadrinhos são uma ARTE. E o fato de serem produzidos em massa não pode impactar na qualidade final dessa estética. No mais, vale se fundamentar num dos aspectos mais discutidos e analisados pelos estudiosos da Arte sequencial, que é o fato dela ser, muitas vezes, decisiva na iniciação leitora e cultural de crianças e jovens. Logo, entregar uma obra mal-acabada, defeituosa, nas mãos de um leitor em formação não nos parece adequado e salutar. Por outro lado, tal obra nas mãos de um leitor calejado, experiente, é um verdadeiro DESRESPEITO.

Portanto, das duas uma: ou se diminui o ritmo das publicações no nosso mercado quadrinhístico, intensificando, então, o cuidado editorial na produção dos títulos e garantindo, assim, uma melhor qualidade para eles; ou que se aumente o número de profissionais contratados, com formação especializada, mantendo o ritmo constatado e, IGUALMENTE, a excelência dos produtos publicados. Somente assim evitar-se-á o que parecem ser barbaridades, descasos, descuidos e desrespeito em relação ao cenário artístico-editorial de HQs - o que, consequentemente, contribuirá de forma decisiva para a consolidação do respeito aos quadrinhos enquanto manifestação estética.

No mais, uma linguagem artística que se afirmou e conquistou um merecido espaço na premiação literária mais importante do Brasil, o Prêmio Jabuti, não pode ser (des)tratada dessa maneira. Que este texto sirva de incentivo a mais discussões como essa e que, doravante, nossas editoras busquem a construção de um mercado menos quantitativo e cada vez mais QUALITATIVO. Um mercado que enobreça mais e mais a Nona arte.


P. S.: Dois casos merecem "destaque": o fato de em Eight - Forasteiro, da Panini, o problema ter ocorrido na CAPA da edição; e o DESCASO da editora Mythos com o volume 16 de Tex Platinum, pois a equipe editorial nem se deu ao trabalho de reler o texto e fazer as devidas adequações em relação à nova ortografia do português.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Sobre Olimpo tropical, de André Diniz e Laudo Ferreira


Crítico, ácido, pungente e lírico. Eis os adjetivos adequados para se iniciar uma apreciação de Olimpo tropical, obra em quadrinhos dos brasileiros André Diniz e Laudo Ferreira - roteiro e arte, respectivamente -, publicada em 2017 por meio do selo Jupati books, da Marsupial Editora.

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Nela, Biúca, o protagonista, sintetiza a condição de milhares de brasileiros: pobre, negro, favelado, com pouco estudo e marginalizado. E que, sem outra perspectiva, vê no crime o único meio concreto de ascender socialmente - já que é lá que habita seus verdadeiros heróis: os traficantes do morro, esse Olimpo tupiniquim.

A narrativa, fundamentada em referências mitológicas, é concebida em duas partes. A primeira, Entre os homens, nos mostra a personagem principal ansiando por aceitação entre as pessoas da favela; enquanto que a segunda, Entre os deuses, enfatiza sua luta por uma posição de destaque entre os donos do morro: os bandidos. Ambas as partes entrelaçam-se, contundentemente, por temas corriqueiros nas periferias do país: o tráfico e a criminalidade, a perda da infância, a falta de cultura e lazer e, obviamente, a violência e a corrupção policial.

É o cotidiano abordado e retratado como arte. Uma estética engajada e contestadora quanto à realidade que, justamente por seu caráter ordinário e habitual, muitas vezes nos passa despercebida - já que nos acostumamos, dia a dia, com a sua presença. É, pois, uma tentativa de nos fazer sentir, mais uma vez, sob a pele já calejada, um pouco da dor dos milhões de Biúcas que resistem por aí.

Fazendo alusão às tragédias mitológicas, Olimpo tropical não poderia ter um desfecho feliz. Assim como uma sociedade imersa em desigualdade social jamais poderá ter um futuro feliz. Se, ao final da leitura, conseguirmos relacionar tais questões, a obra cumpriu algumas de suas funções: arrancar a venda que, muitas vezes, encobre nosso olhar e nos fazer perceber que essa é uma história de todos nós.

No mais, é um baita quadrinho. O roteiro consegue ser rico e simples ao mesmo tempo, enquanto a arte, com belíssimas cenas, consegue suavizar, de forma lírica e sensível, a crueza e o caráter visceral do amontoado de casas, barracos, veículos e pessoas que figurativizam as favelas do Rio (e de qualquer outro lugar).

Talvez a "falha" da HQ esteja na descaracterização da fala da personagem como um autêntico adolescente do morro, com pouco estudo. Mas tal "falha" pode ser um efeito de sentido pretendido pelo texto, numa clara tentativa de fugir aos estereótipos, mostrando que um favelado, mesmo jovem e que tenha abandonado a escola, envolto em criminalidade e violência, pode deixar transparecer em seus diálogos reflexões e criticidade profundas.

Para além do exposto, a leitura de Olimpo tropical representa uma forma de valorizarmos os quadrinhos produzidos em território nacional e, também, uma ótima porta de entrada ao universo artístico dos autores André Diniz e Laudo Ferreira.


quarta-feira, 20 de março de 2019

Uma breve reflexão sociopolítica a partir de Tex Platinum 19 - Testemunhas de acusação

Uma boa história é sempre aquela que nos impele a refletir sobre a sociedade circundante. E é justamente por isso que Tex, Testemunhas de acusação, chama tanto a atenção: ecoa indagações interessantes e importantes sobre nosso cenário social atual. Com roteiro de Claudio Nizzi e desenhos de Victor de Lá Fuente, a narrativa ágil e inteligente faz parte do volume 19 de TEX PLATINUM.


Na trama, Tex e Kit têm que realizar a escolta de algumas testemunhas indígenas até a Capital Washington, pois lá há a denúncia de um esquema de corrupção envolvendo o desvio de verbas públicas destinadas à causa dos índios. Assim, os envolvidos em tal esquema planejam diversas emboscadas no caminho dos Rangers e seus escoltados, dando início aos conflitos da edição.

De 1948 até os dias de hoje, Tex Willer aprendeu muito. Suas histórias ficaram mais criativas, profundas, interessantes. Seu caráter foi solidificando-se mais e mais: um verdadeiro herói defensor dos fracos - o que quer dizer vulneráveis socialmente - e oprimidos (mulheres, negros, índios...). Fiel aos princípios da justiça e, por isso mesmo, nunca fazendo-a com suas próprias mãos, é, pois, um defensor da lei disposto a tudo para que os braços da legalidade alcancem e punam os bandidos e malfeitores que a agridem. 

Tais idiossincrasias, aliadas ao forte caráter de Águia da Noite (como Tex é conhecido entre os líderes indígenas), são responsáveis por suscitar questões tais como: Se Tex aparecesse hoje, aqui no Brasil, como ele seria visto ante tal cenário sociopolítico - um cenário ora indiferente ora violento em relação aos vulneráveis? Seus ideais e valores seriam festejados como nos gibis? O mocinho seria exaltado ou escorraçado por lutar a favor dos grupos sociais minoritários que ele tanto defende em suas histórias?

Isso porque, no Brasil atual, tudo está radicalizado. Muitos fatos sociais, políticos e ideológicos condicionaram grande parcela da população a extremos, reduzindo-a a rótulos como "de direita", "esquerdista", "comunista", "capitalista" e diversos outros. E em tempos de extremismo, o bom-senso e a razão, características fundamentais para o bem da sociedade, são soterrados pela ignorância e pelo preconceito - e, nesses casos, heróis como Tex e seus pards se fazem necessários, justamente, por serem ponderados.

A defesa dos direitos humanos básicos, a defesa de minorias, a busca por igualdade e justiça, a demarcação das terras indígenas, o combate ao racismo e preconceito, a tolerância religiosa, a luta pela não exploração do trabalhador, a igualdade de direitos a homens e mulheres e tantas outras bandeiras levantadas pelos que lutam por um mundo melhor são ações rotuladas, pejorativamente, como pertencentes à ideologia "de esquerda". No entanto são ações ponderadas, razoáveis - e ponderação e razoabilidade NÃO CABEM EM ÉPOCAS EXTREMADAS. Portanto, e infelizmente, Tex e seus companheiros de luta não seriam bem-vindos em nossa sociedade.

Tex Willer não defende que "bandido bom é bandido morto". Seus princípios, condizentes com a civilização que busca avançar em direção à paz e harmonia entre os povos, são incompatíveis com a mentalidade de amor à ignorância, à desigualdade e à violência que assolam o país. "Vá pra Cuba", "Está compadecido com bandidos, leve-os pra casa", "Direitos humanos para humanos direitos" seriam estas as expressões que nosso herói teria de escutar, diária e obrigatoriamente, por aqui.

Passagens como as das páginas 182 e 183, em que o índio Joselito conversa com Tex sobre os homens da cidade grande que "vivem como formigas enlouquecidas, atrás de trabalho e dinheiro", infelizes e sem brilho e vida no olhar, seriam tidas como "doutrinação esquerdista". Enquanto que a fúria de Tex contra o discurso racista e segregacionista feito pelo passageiro do trem, lá nas folhas 149 a 151, seria rotulado como "mimimi" - e, também, "de esquerda". Mais uma vez: onde há extremismo, morrem o bom-senso e a razão.

Testemunhas de acusação é uma ótima história (a melhor da série Platinum!). Nos mostra bem os valores pelos quais Tex luta. Mostra também que é preciso engajar-se nas disputas políticas, pois somente assim grupos minoritários e em situação de vulnerabilidade podem organizar-se na tentativa de cessar a opressão - como fez o índio Ely Parker, o Comissário de Assuntos Indígenas de Washington ao inserir-se na "terra dos brancos", visando melhorias para o seu povo.

Que a trama nos sirva de lição nesses tempos difíceis, em que impera a veneração à violência (física e psicológica) e ao desrespeito ao SER HUMANO.

P. S.: Imagem retirada do site da Editora Mythos.



quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Ar condicionado, de Gustavo Piqueira (porque é o Dia do Quadrinho Nacional)


Hoje, 30 de janeiro, se comemora o Dia do Quadrinho Nacional. Isso porque, lá pelos idos de 1869, o ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843 - 1910) publicou As aventuras de Nhô-Quim, obra considerada o embrião das modernas narrativas gráficas ou histórias em quadrinhos. Assim, é importante escrever algo a respeito - tanto para reforçar esse marco histórico quanto para valorizar obras e autores da Nona arte brasileira.

A HQ escolhida para a referida comemoração é Ar condicionado, do artista Gustavo Piqueira, publicada pela editora Veneta em 2018. Trata-se de uma simbiose entre as linguagens dos quadrinhos, das artes visuais e da literatura. E antecipo: é uma criação genial!

Construída a partir das trivialidades experimentadas cotidianamente, dos nossos pequenos e vastos conflitos interiores diários, Ar condicionado nos mostra o quão solitários e perdidos somos e estamos em nós mesmos - esse oceano de ideias incomunicáveis.

O enfado repetitivo do dia a dia, os descaminhos que a mente nos obriga a seguir, nossa incapacidade de interação com o outro e, sobretudo, a insegurança que a sociedade atual nos obriga a ter são abordados de forma sutil pela narrativa dinâmica de Piqueira. Cada qual preso em seus pequenos-grandes dilemas existenciais.

Tudo materializado de maneira singular e genial. Os cenários são sugeridos, quase inexistentes, já que a ênfase é dada aos interiores, ao que há contido dentro das personagens. Estas são expressas por silhuetas, contornos que abrigam em si uma torrente condicionada de pensamentos os quais, vez ou outra, escapam no todo semi-vazio das grandes cenas ou quadros.

É esse ar condicionado em nós, perdido nas vastidões dos espaços das páginas da narrativa, a principal personagem. É um universo-linguagem a preencher, completa e de forma aparentemente desconexa, todos os lugares do nosso eu, vazando, gota a gota, na ínfima interação e no pobre diálogo com o outro. E isso é angustiante: um mar represado, cuja fresta existente dá vazão ao que transparecemos ser.

Gotas desse mar pingam e dizem pouco sobre quem realmente somos e o que queremos. Apenas traduzem a nossa solidão e a nossa incapacidade de nos darmos a conhecer pelo outro, nos confinando a uma vida social mas, paradoxalmente, solitária.

Ar condicionado é, portanto, uma obra que merece ser lida, apreciada e discutida nesse Dia do Quadrinho Nacional. Além disso, é um exemplo de como o quadrinho brasileiro é capaz de ser surpreendente.

P. S.: Imagem retirada do site da editora Veneta.







segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Mito! Mito! (Soneto a ser censurado)

Eis que um novo governo, Bolsonaro,
assume a presidência do país.
Acordando uma turba de ignaros
que berra: É o fim do "Mal", pela raiz!

Guerra à tolerância, ao senso crítico,
à História, à Ciência e à Razão.
Agora é o Ódio - discurso típico
de homens covardes, como o Capitão.

Que grita e manda, de longe, escondido,
por temer toda a fala divergente.
(Décadas de política... E perdido!)

"Farsa e mentiras! É tudo o que tens!"
"Mito!" "Mito!" Urra a acéfala gente,
refletida no Cidadão de bens.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Aventuras de uma criminóloga: um breve registro


Dentre as várias histórias interessantes que li nos últimos dias, destaco Como duas fúrias, de G. Berardi e L. Calza, e desenhada por Roberto Zaghi. Faz parte da edição 137 de J. Kendall - Aventuras de uma criminóloga (Editora Mythos, 2018). É simples, atual, tocante e bastante contundente.

Conta sobre dois jovens cheios de problemas pessoais e sem perspectivas quanto a algum futuro. Ambos são pobres, oriundos de lares desestruturados e buscam no mundo do crime um modo de dar vazão às suas frustrações. Como ocorre cotidianamente com milhares de jovens das periferias do mundo.

A trama nos faz refletir sobre nossa própria realidade, nos mostrando como a desigualdade social é o grande mal das sociedades. Nos faz pensar em como a falta de cultura e a desesperança no porvir influenciam, decisivamente, nossas vidas. E mais: como o discurso meritocrático, que subjaz à narrativa, é falacioso.

E, principalmente, nos abre os olhos para o fato de que, muitas vezes, é preciso enxergar toda a narrativa que leva alguém a cometer algum tipo de crime já que, segundo a criminóloga Júlia Kendall, "a violência nunca é um gesto repentino, é um percurso que vem de longe." Isso não para perdoarmos os criminosos, mas para entendê-los e, assim, criarmos meios de evitar que tudo isso continue a ocorrer.

Assim, tal como as Fúrias da mitologia, as duas personagens personificam a vingança. Uma vingança contra um mundo cinza, que não lhes oferece oportunidades. Um mundo tal como o nosso: violento, cru e extremamente desigual, que nos oprime contra a parede e nos força a diárias atrocidades.


P. S.: Imagem retirada do site da Editora Mythos.