terça-feira, 1 de outubro de 2019

Uma rara e vigorosa flor na Nona Arte


Da fictícia Garden City, um jardim-metrópole que enfeita algum canto dos EUA e cujas ruas recebem bonitos nomes de espécies de flores, surge Júlia Kendall, a  crimonóloga que, juntamente com o Departamento de Polícia da cidade, trabalha arduamente na investigação e solução dos variados tipos de crimes que acometem a vida dos cidadãos.

Saída da fértil imaginação do italiano Giancarlo Berardi (1949), lá pelos idos de 1998, Júlia - além de atuar junto às investigações criminais - leciona numa importante Universidade da cidade a disciplina de Criminologia. É solteira por opção, calculista, racional, educada e amável. Forte e decidida, madura e sensível, é extremamente humana, ética e profissional num mundo cada vez mais duro, frio e violento.


De compleição frágil - mas de caráter determinado -, resistente ao uso de armas (prefere um rijo e pesado cinzeiro de alabastro na bolsa), luta, insiste e resiste num cenário quadrinhístico dominado por personagens do sexo masculino. É, pois, uma vigorosa e rara flor de resistência em meio à dureza e aspereza da sociedade.

Suas histórias são densas, inteligentes e intrincadas; mas líricas, críticas e bastante sensíveis aos diversos temas que permeiam nossa humanidade e a nossa vida social. Pertencentes ao gênero policial, são repletas de crimes, investigações, ponderações psicológicas, sociais, filosóficas etc. Nelas, conflitos pessoais, dramas diários, pitadas de romance e pilhérias coadunam-se a tudo isso para a genialidade e grandeza das tramas.

Depois de duas décadas nas bancas italianas, sob os auspícios da Sergio Bonelli Editore, e no cenário de quadrinhos brasileiro há mais de dez anos, Júlia difere de qualquer outra publicação do mainstream publicada periodicamente por aqui. Isso porque em J. Kendall - Aventuras de uma criminóloga Júlia é realmente a protagonista das histórias e, mesmo estando cercada de homens, ela transita com autonomia e força, se impondo num universo quase sempre bruto, insensível, machista, patriarcal. Nada submissa, diríamos que - para usar um termo em voga no momento - Júlia é empoderada e, talvez, até mesmo feminista, pois quer respeito e os mesmos direitos que apenas os homens parecem possuir, mas que, em sociedades progressistas e democráticas, são de todos.


Atingindo a expressiva marca de 142 edições publicadas pela Editora Mythos - entre publicações mensais, posteriormente bimestrais e alguns especiais, acompanhando os altos e baixos de um mercado quadrinhístico que busca incessantemente consolidar-se -, e apesar de reconhecidamente vir a ser considerado um gibi de grande qualidade, vencendo, inclusive, o HQMIX de 2010 na categoria de Publicação de Aventura/Terror/Ficção, a criação de G. Berardi ainda é pouco conhecida/divulgada/discutida entre os leitores de HQs - principalmente entre os  mais jovens.

E num universo de revistas em quadrinhos com qualidade duvidosa, que perpetuam quase doentiamente estereótipos, e cujo predomínio se dá pela presença massiva e ostensiva de personagens do sexo masculino, e héteros, J. Kendall - Aventuras de uma criminóloga é uma bem-vinda ilha de inteligência e beleza, um verdadeiro primor dos quadrinhos. Ou, para ficarmos na ambientação de Garden City: uma forte e rara flor no âmbito da Nona Arte.



P. S.: As capas das publicações de Júlia são sempre impressionantes. A genialidade criativa é do artista Cristiano Spadoni.

P. S. 2: Como é comum nas criações da Bonelli, Júlia tem as feições de uma personalidade americana. No caso, da atriz Audrey Hepburn.

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