segunda-feira, 1 de julho de 2019

Angola Janga: um quadrinho didático, histórico e de resistência

Algumas obras de arte nos causam impressões tão fortes, nos marcam tão profundamente que não há outra alternativa senão discuti-las, comentá-las, indicá-las, enfim apresentá-las ao máximo de pessoas que conseguimos. Angola Janga - Uma história de Palmares (2017, editora Veneta, 432 páginas) é uma dessas obras.



Escrita e desenhada por Marcelo D' Salete e merecidamente vencedora de diversas premiações, é um quadrinho que apresenta uma das infinitas histórias acerca do maior quilombo em terras brasileiras, Palmares - e, igualmente, o maior e mais estruturado ambiente de resistência de negros escravizados do Brasil colonial.

Suas centenas de páginas, em preto e branco, são repletas de belíssimas e cuidadosas ilustrações, de traço fino e bastante esmerado até mesmo nos pequenos detalhes. Crueza e lirismo se materializam simultaneamente nos desenhos, enquanto estes encadeiam-se numa narrativa vigorosa que alterna entre o presente e o passado das suas personagens. Há, na mesma medida, força e dinamismo nas cenas, e, inclusive, na confecção dos cenários que ora nos mostram a vastidão e a vivacidade das matas e florestas, ora nos revelam o início das vilas e do frio sistema industrial dos engenhos.

A capa de Angola Janga figurativiza bem o seu conteúdo: enfatiza não as personagens e suas lutas, antes, no entanto, a força, a existência e a resistência de Palmares - esta sim a personagem protagonista da obra. Incrustada nela, joias como as figuras de Zumbi, Ganga Zumba, Acotirene, Soares fazem o quilombo Palmares brilhar e significar ainda mais. Apesar de conflitos internos na sua organização, este mostra-se bem estruturado e organizado para a resistência, luta e subsistência dos negros. É, ainda, a esperança e um paraíso ante o inferno imposto pela escravidão e matança perpetrados pela Coroa portuguesa, pelos senhores de engenho, pelos capitães do mato, pelos religiosos, pelos bandeirantes - todos demônios insaciáveis.

Referente ao trabalho com a linguagem quadrinhística, é interessante observar que esta é usada com muita propriedade pelo autor, o que é visível no ritmo imposto pelas sequências e pelos diferenciados tamanhos e formatos dos quadros, pelos desfechos dos capítulos, em razão da plasticidade e do uso das onomatopeias, bem como em relação ao requadro levemente diferenciado indicativo da alternância do tempo narrativo. O espaço geralmente empregado pelo narrador é usado como continuação do discurso direto das personagens, o que é um diferencial no uso do recurso e na passagem das cenas. No mais, apenas o balão, nos momentos de gritos, poderia ser explorado de maneira mais dinâmica, mas o mesmo efeito de sentido é obtido com a alteração da fonte do texto.

Coadunado ao brilhantismo estético da bela edição, é importante ressaltar seu caráter didático e histórico. É uma verdadeira e bem dada aula introdutória sobre o que foi o quilombo dos Palmares, sobre o início da escravização e exportação de povos negros, como a Colônia foi edificada às custas da vida de índios e escravizados, como agiam os senhores de engenho, a Igreja, os políticos daquele período, como o negro era objetificado, coisificado, como eram os cenários, as vestimentas, o linguajar, os fazeres etc. dos sujeitos inseridos naquele contexto.

Paralelo a esse didatismo inerente à HQ, há a luta por ressignificar a figura e a história do negro no Brasil. É a História sendo contada não mais pelo europeu colonizador e escravista, mas pelo escravizado - porém não aquele que apenas apanhou e trabalhou na fundação do país, mas sim aquele que resistiu, lutou pela sobrevivência dos seus, guerreou e matou por liberdade, por sua cultura e modo de existir. E que, poucas mas significativas vezes, se fortaleceu e venceu.

É um outro viés narrativo, outro olhar - não cabisbaixo, passivo, "do escravo" amansado e domesticado, mas um olhar furioso de quem foi privado do direito de ser humano, um olhar que resiste, luta e anseia por liberdade e paz. São olhos que revelam astúcia, arte e inteligência em fortificar-se, estruturar-se, defender-se e atacar o inimigo. São olhos onde faíscam uma excelência e um desejo de autogovernar-se.

Dividida em 11 capítulos, cada qual com um texto histórico e contextualizador de abertura, chama a atenção, principalmente: Os selvagens; Encontros; O abraço; e Passos na noite. O primeiro por nos fazer refletir sobre quem realmente eram os selvagens: o nativo, os negros ou os responsáveis pelo seu quase extermínio? O segundo por mostrar um pouco mais detidamente o dia a dia num mocambo. O outro por ser o clímax da narrativa, mostrando a captura do líder Zumbi; e Passos na noite, o último, por amarrar toda a história e estabelecer um importante diálogo entre a nossa sociedade, hoje, e a realidade de resistência suscitada pelas experiências de Palmares. Todos extremamente ricos em lirismo, significados, sugestividade e expressividade. Uma introdução rápida e extras, como notas e um glossário, complementam a riqueza da obra.

Publicada no ano de 2017, Angola Janga - Uma história de Palmares venceu os principais prêmios para o seu segmento: o Jabuti, o HQMIX e o Grampo (todos em 2018). Didática, de luta e de resistência, constitui-se como marco para a cena quadrinhística brasileira e, principalmente, para a comunidade negra em geral. É, pois, uma bandeira crítica de informação, ressignificação e conscientização do que foi o quilombo de Palmares.

P. S. : Angola Janga foi selecionada para ser distribuída às escolas, em 2018, por meio do Programa Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário).

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