domingo, 26 de janeiro de 2020

Exclamações e mais exclamações: a Mythos e os gibis Bonelli no Brasil

Desde os bancos escolares aprendemos sobre os variados sinais de pontuação: ponto, reticências, interrogação, vírgula, exclamação entre outros. Cada um deles, no nosso português (brasileiro, já que há outros), é carregado de significados, de valores semânticos, e são responsáveis por tentar manifestar na língua escrita os efeitos de sentido presentes na entonação da língua falada. Assim, entendemos que os significados mudam a partir do tipo de sinal utilizado quando da escrita.

Um rápido e simples exemplo segue: NÃO. NÃO... NÃO! NÃO? "NÃO" - cada um desses usos escritos da palavra NÃO carrega, juntamente com a pontuação que a acompanha, efeitos de sentido diferentes (afirmação, hesitação, raiva, dúvida, um discurso direto, uma ironia ou seja lá o que o contexto situacional queira comunicar); não são, obviamente, a mesma coisa. Justamente por isso é natural que profissionais que realizam traduções estejam acompanhados de outros colaboradores que fazem a adequação do texto ao nosso idioma, já que os efeitos de sentido presentes no idioma de origem devem estar também presentes e fazer sentido na nossa língua - tudo o mais próximo possível da obra original e da interação comunicativa pretendida inicialmente.

Assim como ocorre com variadas línguas, entre o italiano e o nosso português brasileiro há similaridades e divergências, e isso em todos os níveis (fonético, morfológico, sintático, semântico etc.), mas nos perece que, em relação aos sinais de pontuação mais comuns encontrados nos quadrinhos italianos da editora Sergio Bonelli (interrogação, vírgula, reticências, exclamação e ponto), publicados no Brasil principalmente pela Mythos Editora, há muito mais convergências que diferenças, ou seja, os sentidos representados pela escrita destes são bastante semelhantes também no nosso idioma pátrio: o ponto de interrogação marca uma pergunta direta (pois há indiretas também); o ponto final representa uma pausa máxima ao fim de uma declaração; as reticências marcam a interrupção da frase, sua suspensão; etc. No entanto causa estranheza o uso singular do ponto de exclamação feito pela Mythos e, consequentemente, a sua falta de correspondência com os sentidos pretendidos, bem como com as normas já estratificadas do nosso português, algo predominante e preocupante em algumas de suas publicações.

O ponto de exclamação, convém ressaltar, é responsável por buscar transmitir, na escrita, emoções: tensão, medo, raiva, espanto, exaltação no tom de voz entre outras - é isso que se aprende desde tenra idade escolar. Não obstante tais palavras, provindas do senso comum, recorremos ao Dicionário Escolar da Academia Brasileira de Letras, de 2011, que, na página 1005, diz que ele é um "sinal (!) usado para marcar o fim de uma frase exclamativa." Por exclamação, entende-se, como definido pelo mesmo dicionário, desta vez na página 559, "(Gram.) Pontuação usada numa frase escrita para expressar alegria, surpresa, raiva etc." Para findar está rápida explanação sobre o ponto de exclamação parafraseamos as palavras do filólogo, gramático e professor Celso Cunha que, na sua Gramática do Português Contemporâneo, pág. 431, corrobora o que foi dito aqui, apontando as VARIEDADES de seu valor pausal para sugerir a mímica EMOCIONAL - seja de espanto, surpresa, alegria, entusiasmo, de cólera, dor, súplica e muitas outras, além de acompanhar interjeições ou termos semelhantes.

Definido e entendido isso, o que observamos como singular regra nos quadrinhos bonellianos publicados pela Mythos é a errônea substituição do ponto final pelo ponto de exclamação ao fim de toda e qualquer sentença declarativa, negativa ou afirmativa, estando ela ou não expressando quaisquer emoções das personagens. Lógico que não pesquisamos todos os quadrinhos italianos que a referida editora traz ao Brasil, mas notamos que isso é a regra nas publicações de, pelo menos, três personagens: o caubói Tex Willer, o detetive do insólito Dylan Dog e o heroico Dragonero - personagens com uma grande soma de títulos lançados em bancas de jornais.

Tex; Tex Willer; Tex Platinum; Maxi Tex; Tex Gigante; Dylan Dog Série Clássica; Dylan Dog Nova Série; Dragonero Especial e Dragonero bimestral. Nove títulos regulares que dão à exclamação as mesmas características do ponto (final), desrespeitando não apenas regras convencionais da ortografia brasileira, mas muitas vezes deturpando variados efeitos de sentido contidos nos referidos sinais de pontuação e deixando à margem o fato de que cada qual tem seus próprios usos e especificidades. A bem da verdade, o ponto, salvo quando empregado pelo discurso indireto do narrador, nunca aparece nos diálogos das personagens - ele foi deliberadamente banido de tais revistas!

Basta, pois, abrir tais publicações, em páginas aleatórias mesmo, e constatar: TODO FINAL DE FRASE DECLARATIVA É MARCADO COM UM PONTO DE EXCLAMAÇÃO. As personagens podem estar conversando trivialmente, cochichando, gritando, enfatizando algo, tomadas por emoções... Pouco importa o contexto, não há distinção para o emprego do referido sinal gráfico! Abaixo, segue uma simples amostra com as páginas (que poderiam ser quaisquer outras) que exemplificam a presente discussão.

Pág. 61, de Tex Willer 11;



Pág. 205, de Maxi Tex 2;



Pág. 206, de Dragonero Especial;



Pág. 35, de Dragonero 1 (bimestral);



Págs. 23 e 29, de Tex - Graphic Novel 2;




Pág. 29, de Dylan Dog Série Clássica 12.



Interessante e importante, além de positivo, ressaltar que em Editoriais, Extras e páginas que apresentam notícias jornalísticas, por exemplo, não há este erro. Um sinal claro e evidente de que nem todas as sentenças ali constantes expressam emoções; daí ser impossível, grosseiro mesmo, mantê-las repletas de exclamações! Vejam (e leiam) os Editoriais de Tex 600, de Tex Gigante 34, de Dylan Dog Nova Série 6, os Extras escritos por Roberto Recchioni e Angelo Stano na Dylan Dog Série Clássica 5 e a página 19 de Dylan Dog Série Clássica 12 (reproduzida abaixo), na qual consta uma notícia de jornal sobre Johnny Freak. Respeita-se o original italiano, a pontuação adequada do português e, obviamente, os efeitos semânticos, de sentido, sugeridos pelos textos.

Página 19 de DYD - Série Clássica 12



Uma coisa, de fato, podemos depreender: o uso inadequado, abusivo e singular do ponto de exclamação apontado aqui é uma atitude deliberada; é uma decisão, por mais errônea e estranha que seja, da equipe editorial da Mythos Editora. O motivo, não sabemos, mas podemos confirmar isso com o trecho original do roteiro de Gigi Simeoni para a história Na fumaça da batalha, presente no Editorial de Dylan Dog Nova Série 7. Tal trecho representa a página 13 da edição 6 da mesma série e a partir dele podemos estabelecer que a Mythos substitui todo ponto final por exclamações, criando, com isso, uma padronização absurda e desnecessária do conteúdo original. Vale ressaltar que a página original dessa história, a número 9 de DYD 343, seguiu exatamente o que fora colocado por Simeoni em seu roteiro. Abaixo, as três páginas.

O roteiro de G. Simeoni presente no Editorial de DYD - Nova Série 7



A página 13 com a tradução e adaptação da Mythos, presente em DYD - Nova Série 6



A página original de DYD 343, da Bonelli



Se tal atitude é uma escolha da editora, como nos parece, é uma escolha errada e, portanto, deve ser repensada, pois o ideal é aproximar-se o máximo possível da obra de arte originalmente concebida, além do fato já mencionado de que cada sinal de pontuação tem suas particularidades semânticas e de uso. A página 15 de DYD - Nova Série 2 é mais um exemplo dessa infeliz e errônea escolha adotada pela Mythos Editora. Segue, abaixo, juntamente com ela, a sua correspondente italiana.

Página 15 de DYD - Nova Série 2, da Mythos




Página 15, do original italiano



Insistimos em afirmar que os quadrinhos são arte, e como tal devem ser tratados (por leitores, autores, críticos, editores...). No mais, pesquisamos outras histórias, também de DYD, publicadas por outras editoras no Brasil - Lorentz, Globo e Record - e, importante enfatizar, o ponto final (ou a pontuação original) foi mantido nas traduções/adaptações. Isso pode ser conferido nas páginas abaixo.

Página 23, de DYD 1 (Record)



Página 65, de DYD, em Fumetti - O melhor dos quadrinhos italianos (Globo)



Página 16, de DYD 3 - Mater Morbi (Lorentz)



É provável que tal atitude, esta singular, inadequada e imprecisa uniformização do texto nos balões, deva-se ao fato de precisar agilizar o trabalho na Redação (única explicação razoável!), já que o volume de lançamentos aumenta cada vez mais. Mas, a julgar pelos valores cobrados por tais produtos, esse é um ERRO imperdoável e que atenta contra os leitores e, por extensão, os autores de tais criações. Esperemos, pois, um amadurecimento editorial de uma empresa gigante no setor e há décadas consolidada no mercado de quadrinhos brasileiro. Esperemos que, doravante, tal erro possa ser corrigido e não se torne a única regra para a publicação de fumetti pela Mythos Editora.


P. S.: Vale destacar que em todas as histórias da Fumetti - O melhor dos quadrinhos italianos, da Globo, a pontuação segue as regras convencionais e o original - inclusive na história de Tex.

P. S. 2: Interessante observar que a coleção Gold de Tex, publicada pela editora Salvat, segue a mesmíssima uniformização do texto. Isso talvez se deva ao fato da equipe editorial responsável pelas histórias ser a mesma da redação da Mythos. Abaixo, um exemplo a partir da página 61 do primeiro número de Tex Gold.



P. S. 3: Dampyr segue o mesmo padrão e Diabolik, que não é da Bonelli, não. Ambos são publicados no Brasil pela Editora 85.

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