segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Breves considerações acerca de Procissão, de Vinicius Velo


Meados da década de 20 no sertão nordestino. A seca, os coronéis e o cangaço assolam brutalmente a terra e o povo que habita a região. Resultante deste contexto e embriagados pelo ódio, rancor e obsessão com a vingança, duas poderosas famílias aniquilam-se, geração após geração, numa rixa já secular.

Esta é a premissa de Procissão, do artista Vinicius Velo (roteiro e arte), obra em quadrinhos lançada em 2019 por meio do ProacSP - Programa de incentivo à cultura do Governo do Estado de São Paulo. Suas cerca de 100 páginas apresentam um roteiro forte, bem escrito, bastante fluido além de ótimos desenhos, com traços seguros, firmes e precisos, materializando uma trama bem construída e promissora, dinâmica - daquelas que aprisiona a atenção do leitor até a última página.

Tanto o competente texto quanto a primorosa arte são tentativas bem-sucedidas de aproximar-se da realidade, que vem mesclada ao fantástico, retratada na publicação: a dureza de uma terra embrutecida, repleta de histórias misteriosas, lar de um povo forte que teme tanto a ira de Deus quanto a maldade dos homens. A escrita é áspera, ágil e carregada de reflexões sobre a cultura singular do Nordeste. Os desenhos, por sua vez, figurativizam bela e precisamente a temática do sertão, num claro e escuro resoluto, com linhas grossas que revelam um ambiente seco e castigado, mas esperançoso, e personagens igualmente marcadas pela dureza da natureza local. A tonalidade amarelada das páginas da HQ enfatiza a força do sol abrasador daquele espaço.

Além disso, o ritmo da narrativa é outro ponto positivo de Procissão. As passagens de cena, a dinamicidade dos quadros, os movimentos das personagens e as cenas de ação - tudo perfeitamente costurado pelos textos do narrador e dos balões - revelam as claras influências da estética cinematográfica na obra, bem como na Nona arte em geral.

A história, calcada em realidades verossímeis daquele período histórico, o cangaço em oposição ao poder dos coronéis, é enriquecida pelo fantástico e pela religião de um povo tolhido entre a tirania e o medo, a fé na mudança e a força insurgente dos cangaceiros: ideologias antagônicas, visões distintas de mundo que aturdem e mexem com a vida e as emoções do sertanejo.

Vinicius Velo mostra, com Procissão, o quanto é interessante a abordagem de temas brasileiros associados criativamente com a cultura pop em geral. O leitor se reconhece na história e, por isso, pode vir a problematizá-la e relacioná-la com suas vivências - o que eleva a arte sequencial a um patamar acima do mero entretenimento. É Arte mesmo! E é grande justamente por isso.

Procissão é, por fim, mais uma prova de que a Nona arte brasileira está cada vez mais inteligente, criativa, rica e ousada. E que, mesmo à margem das grandes editoras, a produção quadrinhística independente e de qualidade apenas se fortalece com o passar do tempo, solidificando a tríade mais que necessária na construção de um mercado artístico de quadrinhos no Brasil: temática identificada com nossas realidades culturais, qualidade (de criação, acabamento, distribuição etc.) e preço acessível às massas. Que venham mais obras assim!!


P. S.: Texto em comemoração ao Dia do Quadrinho Nacional, 30 de janeiro.

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