domingo, 2 de julho de 2017

A bela e estranha Dylan Dog - Retorno ao crepúsculo


Dylan Dog

Uma região fronteiriça dos mundos dos vivos e dos mortos. Um homem que conhece tal lugar e deve, mais uma vez, ir até lá, agora ajudando uma jovem desconhecida e com um problema a ser resolvido. Tempo e espaço misturados e confusos, teorias para deter a morte, devaneios, realidades e reflexões sobre a profusão existencial do universo.

Algumas histórias são tão ricas quantos às possibilidades imaginativas e interpretativas que, findadas, nos deixam um mosaico de sentido, um quebra-cabeça semântico que vamos, inquietos, tentando montá-lo; porém, depois de concluída tal montagem, não conseguimos - talvez por estarmos próximos demais do objeto - observá-lo como um todo.

Dylan Dog - Retorno ao crepúsculo é uma dessas histórias. Escrita pelos artistas Tiziano Sclavi (texto), Giuseppe Montanari e Ernesto Grassani (desenhos), é uma trama absurda, calcada nas dualidades que perpassam o ser humano: vida e morte, sonho e realidade, desconhecido e cognoscível, mente e corpo, lá e cá... e mais uma porção de opostos que existem, parece, para nos comple(men)tar (e atormentar! também).

Até então nunca havia lido nada da personagem. Confesso, entretanto, que a vontade sempre se fez presente - mas os caminhos, muitas vezes, nos lançam em outras direções... Depois de feito, com a presente publicação da Editora Lorentz, vejo-me surpreendido e embaraçado com a força criativa da HQ - tão bem desenhada e, muito mais ainda, escrita. Em suma, é uma peça fantástica - com tudo de positivo e interpretativo que tal palavra contém em si.

Já nas primeiras páginas fui obrigado a reler, pois percebi que não seria apenas uma simples narrativa de terror. Não. É complexa e metafórica - e tais atribuições vão se intensificando com o desenrolar do enredo, chegando ao ápice de nos mostrar o contista Allan Poe num universo onírico e filosófico, subindo e descendo escadas extraordinárias até deparar-se com um "inferno" bastante familiar ao leitor: o século XX (e o XXI também, claro!).

A personagem principal, o detetive Dylan Dog, é ofuscada pela presença de outra: a dualidade existencial. Assim, a vida e a morte, o real e o surreal são os verdadeiros protagonistas da narrativa, nos sufocando, pressionando e impelindo para alguma de suas extremidades. Nos forçando a observar, aprender e caminhar para fora de nossos mundinhos confortáveis - metaforizados pelo equilíbrio dos polos que, na trama, aparece como a região conhecida por Zona do crepúsculo. Logo, talvez, nem dia nem noite, nem vida nem morte, nem realidade nem fantasias... Mas sim a compreensão e apreensão do todo, pois é um todo que nos define e, portanto, nos orienta o existir. 

Essa Zona crepuscular parece simbolizar o Desconhecido, simples e ao mesmo tempo complexo; e este, metaforiza-se inteligentemente na figura da significativa personagem Opal - encapuzada, escondida, sensível, perseverante... às vezes repugnante e, em outras, atraente e irresistível. É sempre o Desconhecido que nos impele a algum lugar, a algum dos extremos do existir... ou à apatia da vida. É ele que nos move em direção a sentidos e significados. Na narrativa é, pois, ele (ou ela, Opal) que atrai Dylan e o lança na aventura insólita da edição.

É claro que a contextualização existente acerca do conto O caso do sr. Valdemar, de E. Allan Poe, base da narrativa, vem a calhar. Mas, mais interessante é suspender a leitura da HQ lá pela metade e mergulhar na referida e aterradora, sinistra, mórbida peça literária, publicada em meados de 1845. O clima da leitura muda completa e complementarmente pra melhor - garantindo um tom ainda mais sombrio à história. Sombrio e assustador!

Garantindo maior inteligência à aventura, o que não poderia faltar, há as críticas ao homem e ao modo como este encara a vida - críticas ora mais, ora menos, contundentes, porém sempre presentes. Uma delas é a indagação, feita por Dylan, se não estamos todos confinados à Zona do crepúsculo, repetindo gestos, palavras, pensamentos, perguntas e respostas dia a dia, incansável e imperceptivelmente...


Outra, mais crua e direta, é o "inferno" (segundo Poe) que habitamos. Essa torrente infindável e colossal de coisas e pessoas e concreto que atordoa, oprime e sufoca nossas sociedades modernas e civilizadas...



Há, ainda, o questionamento sobre o que é, de fato, o real, e como despertamos para a realidade: dormindo ou acordando?

O uso dos recursos da linguagem dos quadrinhos também é bem feito, enriquecendo ainda mais a HQ, como podemos perceber a partir das sequências dos quadros e imagens contidas abaixo...





Referenciando e homenageando Edgar Allan Poe, Dylan Dog - Retorno ao crepúsculo é absurda e fantástica. Inteligente, estranha, assustadora, inquietante e, acima de tudo, INTERESSANTE; espatifa nosso pensamento e nos deixa atordoados na busca por sentido. É, pois, uma excelente experiência de leitura, e torna tudo o que foi dito neste texto apenas uma pequena mostra das várias e variáveis impressões que a narrativa nos proporciona. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário