Após quatrocentas páginas, terminei a leitura da obra máxima (?) de Alan Moore e Dave Gibbons: Watchmen (1986/1987). Há, ainda, umas dezenas de folhas com extras que umas duas horas resolverão. Enquanto lia, ainda sob o peso do forte impacto do roteiro de Lição de anatomia, também de Moore, fui anotando algumas coisas a respeito da história - pois sabia que me sentiria obrigado a registrar por escrito minhas impressões sobre algo tão singular no universo da arte sequencial.
A primeira qualidade perceptível já a partir das
primeiras páginas do gibi é a riqueza do roteiro. Este é escrito e disposto de
maneira detalhada, intrincada, cuidadosa. Não há pontas soltas; tudo é
perfeitamente amarrado e perturbadoramente profundo. Nada, na trama, é
superficial. Muito pelo contrário: com o avançar das edições, o nível de
profundidade só aumenta, nos impelindo, forçosamente, à reflexão.
Em Watchmen há algo, genuinamente, sem igual. O que
ora parece uma história panorâmica do tão conturbado século XX mostra-se, ainda, maior. Explora o conceito de heroísmo e super-heroísmo, bem como a ascensão do gênero nos quadrinhos nas décadas de 30 e 40, a paranoia do fenômeno UFO - alimentada com a divulgação de A guerra dos mundos, de Orson Wells -, o cinzento pós-guerra e suas consequências:
a questão do Vietnã, os mandos e desmandos políticos das potências mundiais (em
especial, a dos EUA) e, principalmente, o medo ante a iminência de um
conflito nuclear apocalíptico, resultante da Guerra Fria.
Ainda permeando a trama com fatos do século XX, Alan
Moore espalha mais algumas importantes referências, tais como: literatura
Beat, as experiências alucinógenas de expansão da mente por meio de algumas
drogas, a valorização das culturas orientais, o avanço desenfreado (e inconsequente!)
da tecnologia, o avanço do capitalismo e a sua hegemonia com a globalização.
Enquanto o (frio) Dr. Manhattan simboliza a descoberta, o uso e o poder
nuclear, Adrian Veidt representa o inescrupuloso e poderoso mercado. É nestes
dois personagens que está o núcleo, o centro da HQ.
Watchmen nos apresenta uma realidade distópica, onde a loucura e
a paranoia com o fim do mundo coexistem com a esperança de um futuro de paz. Uma
paz imposta com autoritarismo e com as “maravilhas” que os mercados podem oferecer.
E por isso mesmo há uma aura nostálgica envolvendo a narrativa. Uma nostalgia
de quando se acreditava que o mundo não era tão complicado.
A guerra, a sordidez política, o comodismo e o
distanciamento entre os homens, a bipolarização do mundo, a desigualdade social
são o pano de fundo onde circulam pessoas feridas pelos anos e pelas condições
impostas pela vida. E quando pensamos haver alguma esperança, algum resto de
sensibilidade dos poderosos, somos surpreendidos com o apocalipse.
Deus, um ser híbrido constituído de megalomania,
beligerância atômica e “princípios” mercadológicos nos condena a um “paraíso”.
Nos ofusca com o brilho de uma paz fabricada e nos afoga no comodismo de um
universo globalizado e politicamente correto. Nos lança, paradoxalmente, nas
trevas luminosas de um mundo “pacificado”
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Mas Watchmen é muito mais que isso. É de uma profundidade sem igual. E eu
poderia ainda tentar falar do por que ser o centro de tudo um simples
jornaleiro, seus clientes e sua banca de jornal. Ou mesmo tentar discutir a "loucura" e as sequelas proféticas de Rorschach. Ou mesmo a sensibilidade e fúria de Laurie. Ou a
metáfora viva da comédia humana: o Comediante. Ou... a relação do mundo
presente, e seus personagens, com a narrativa pulp que engendra a
trama...
O roteirista parece ter um segredo. Um segredo indispensável a qualquer um que queira trilhar estes caminhos: escreve com a obrigação de tentar conceber a melhor obra artística já criada pelo homem. É exigente além dos limites consigo mesmo, tem uma obrigação social, estética, moral e política na realização de algo inconcebível. E, por isso mesmo, sua criação não pode ser adjetivada por outras palavras que não sejam extraordinária, fantástica e genial.
Enfim, a obra é vasta - em política, filosofia, história, literatura, psicologia etc. - é atemporal - embora dependente
daquele contexto histórico específico - e tudo o que aqui fora dito não representa muita
coisa não. Mas parece ser a ponta desse grandioso e interessante iceberg.
P. S.: Interessante
como a questão da força criadora da mente humana está presente tanto em Lição
de anatomia - já que é ela que dá vida ao Monstro do Pântano - quanto em
Watchmen e no acidente que garantiu o poder atômico do Dr. Manhattan. O poder
de conceber tudo por meio do pensamento do homem deve ser uma ideia fixa em
Alan Moore.
P. S. 2: No capítulo "Relojoeiro", construído sob a temática do tempo, o Dr. Manhattan aparece contemplando "A persistência da Memória", de Salvador Dalí - o que é extremamente significativo ao personagem, pois para ele o tempo (passado, presente e futuro) é fluido.
P. S. 3: O fundo dos quadrinhos apresenta, também, uma narrativa, uma movimentação. Não é estático e esquecido pelos criadores, pelo contrário: há encontros e desencontros que culminam no próximo quadro.