domingo, 14 de julho de 2024

A árvore mais sozinha do mundo, de Mariana Salomão Carrara

A árvore mais sozinha do mundo (TAG, em parceria com a Todavia, 2024) é o mais recente romance de Mariana Salomão Carrara. Nele, conhecemos o duro dia a dia de Carlos, Guerlinda, Maria, Pedro e Alice, uma família de fumicultores do interior do Sul do país frente às adversidades do plantio e colheita do tabaco e às investidas opressoras da grande indústria tabagista.

Narrado em primeira pessoa por quatro narradores distintos - uma antiga e experiente árvore venenosa, uma velha caminhonete, um culto espelho colonial e uma infantil roupa de proteção contra os venenos de agrotóxicos utilizados na lavoura -, apresenta uma história áspera e triste, emocionante e desoladora, misturando crítica social e lirismo. Tudo envolto em uma atmosfera sufocante e melancólica, permeada por leves sopros de ilusão e esperança.

São, portanto, quatro tipos de olhares sobre a mesma família, cada um deles narrando e enxergando alguns ângulos específicos que os outros não veem, e todos se complementando e oferecendo ao leitor imagens exteriores e interiores do espaço e das personagens da história - entrecruzando vozes num criativo e bem marcado discurso indireto livre. Os narradores, mesmo restritos a determinados e parciais campos de visão, são unânimes e uníssonos em narrar o sofrimento, o adoecimento e o trabalho árduo e exaustivo da família, bem como a opressão que a grande indústria do fumo exerce sobre ela, obrigando-a a (sobre)viver exclusivamente o ciclo do tabaco. 

Num espaço isolado, distante e cada vez mais envenenado pela nicotina e pelos venenos utilizados praticamente sem nenhum cuidado, que concretiza e figurativiza  a temática de uma existência quase morta, estagnada, é interessante e bastante significativo o fato dos objetos e seres inanimados serem antropomorfizados e passarem a contar a história. Um procedimento discursivo que gera efeitos de sentido bastante importantes à leitura da obra, pois mostra os seres humanos reduzidos e consumidos por um ambiente adoecido, nocivo e que vai matando-os certeira e lentamente.

E mesmo imersas nesse cenário hostil e repetitivo, castigadas pelas adversidades naturais das geadas e de um sol escaldante quando verão, além da constância impiedosa em plantar, colher e produzir algo que os mata diariamente, há uma beleza que atravessa toda a vivência das personagens, um fiapo de esperança que vai sendo tecido e rompido e novamente tecido e remendado, sempre na perspectiva de que tudo pode melhorar e de que um amanhã diferente ainda é possível. Seja no anseio de que os estudos trarão melhorias à família e à população em geral, ou de que seus esforços na lavoura serão recompensados financeiramente pelos que detêm os meio produtivos da indústria a quem seus produtos são vendidos, a saúde que pode livrar-se da doença causada pela nicotina, ou mesmo a esperança do prêmio e visibilidade na vitória de um concurso de beleza a acontecer. São esperanças frágeis, que geram um tênue véu que, infelizmente, vai se desgastando totalmente até o fim da narrativa. 

Há um tensionamento constante ao longo do romance. Dualidades digladiam-se constantemente: opressão e liberdade, vida e morte, o interno e o externo... E isso não apenas referente ao ambiente que os sufoca, ao veneno que os mata, à indústria que os explora e oprime; mas também à tensão gerada por vários conflitos internos que as personagens têm - feridas psicológicas que as marcam profundamente. Existe um mar sensível e interior que insiste em se rebelar, mas que, no entanto, quase nunca jorra ou transborda. Todos da família permanecem presos em si mesmos, "ilhados em dores particulares." O dia a dia e a rotina flagelantes mascaram e escondem um universo pouco conhecido até por eles mesmos e que, somente com a ajuda e sensibilidade dos narradores, o leitor vai apreendendo.  

Tomado de passagens intensas, doídas, que vão nos marcando, nos machucando e nos preparando para uma dor impiedosa, Mariana Salomão Carrara escreve com força expressiva e experiência. Maneja a língua portuguesa com esmero e muita habilidade artística, mesclando, sem se perder, uma porção de vozes, cada qual com sua erudição, estilos e variações de usos e materializando-as de maneira bastante verossímil e interessante. Incrusta tudo isso num contexto de denúncia social de exploração e opressão de pessoas do meio rural (mazela ainda tão presente em nosso século XXI!), e nos entrega uma obra sensível e original, onde a palavra, rebuscada e trabalhada artisticamente, transmuta-se em verdadeira Literatura.