quinta-feira, 6 de junho de 2024

Piquenique na estrada e a insignificância da raça humana

Piquenique na estrada, dos irmãos Arkádi e Boris Strugátski (Aleph, tradução de Tatiana Larkina), é um romance de ficção científica no mínimo curioso, estranho e interessante. Uma distopia de 1972 que gira em torno da insignificância da raça humana ante o universo e que faz do planeta Terra apenas uma simples e ocasional parada na "estrada" cósmica - daí o "piquenique" do título.


Na narrativa bastante dinâmica, cujo protagonista é Redrick Schuhart, o nosso mundo enfim recebeu a visita de alguma raça alienígena. Eles vieram, não fizeram questão de estabelecer contato e simplesmente se foram. Toda a inteligência e prepotência da humanidade são reduzidas à insignificância pelos desconhecidos seres extraplanetários, restando-nos a perplexidade, o abandono e a solidão em nossa pequena ilha de ignorância.

Na partida, talvez como uma sacola de lixo ou uma porção de peças sobressalentes trocadas de suas naves espaciais (impossível saber ao certo!), os aliens deixaram diversos objetos - e são estes, pois, que despertam indagações e a cobiça científica, militar e capitalista dos terráqueos, fazendo surgir os ditos stalkers, que são as pessoas (guias) que se embrenham e se arriscam em adentrar as Zonas de Visitação para explorar e espoliar o que for possível de artefatos para a venda ilegal. 

Redrick é um desses stalkers. Com as ações dele, o leitor vai percebendo os efeitos que tal visita provocou e provoca, tanto no ambiente quanto nas pessoas, nos governos e na sociedade em geral. Radiação, mutação genética, migração, medicina, corrida armamentista, desenvolvimento econômico... Uma miríade de implicações que vão condicionando, direta e indiretamente, o desenvolver da narração e afetando os estados de existência das pessoas. 

Dividido em três partes, o livro é narrado inicialmente em primeira pessoa (pelo próprio Redrick), em seguida um narrador em terceira pessoa assume a narração para, já na terceira parte da obra, diluir sua voz numa porção de outras - num interessante e bem-marcado discurso indireto livre. Tudo isso, refletido na materialização da trama e gerando efeitos de sentido de ritmo intenso, veloz e sem pausas (a não ser ao fim de cada uma dessas partes), faz de Piquenique na estrada uma distopia áspera, sarcástica, crítica e carregada de desesperança. 

O extraordinário, antes temido e curioso, passa ao ordinário e trivial - integrando-se às banalidades egoístas e financeiras da exploração capitalista e belicosa do homem. As instituição, obviamente, recorrem à atividade ilegal dos stalkers, travestindo-a burocraticamente com ares oficiais. As Zonas de Visitação, mesmo perigosas e mortais, são cada vez mais e mais exploradas e, não fosse pela presença física delas, até mesmo a existência de outra raça no cosmo, agora já sabida, seria completamente engolfada e esquecida pelo cotidiano mesquinho que circunda e arrasta as personagens.

Metonimicamente, Redrick figurativiza toda a espécie humana, sempre correndo em desespero por sobreviver, conseguir dinheiro e tentar mudar de vida - esta, sem grandes pretensões e com poucas perspectivas. Numa atmosfera desesperançada e cinzenta, a esperança, ironicamente, demora a aparecer e cristaliza-se, tão somente, quando se percebe que a lenda de um dos artefatos alienígena, a Esfera Dourada, pode ser verdadeira. Este objeto seria, então, responsável pela realização de qualquer desejo, desde que íntimo e sincero.

Porém, e mais uma vez irônica e contundentemente, tem-se a sacada genial da obra (que foi trabalhada de maneira magistral por Tarkóvski na adaptação Stalker, filme também dos anos 1970): o ser humano não se conhece; não faz ideia do que realmente quer; não sabe qual monstro perverso, ou mesquinho, pode habitar suas entranhas. Tomado de superficialidades, trivialidades, mesquinharias diárias, ele soterra seu mais profundo Eu, suas mais claras verdades - perde-se de si, em si mesmo. E isso o faz hesitar, ficar paralisado, temer diante de possibilidades infinitas - e, como vemos na obra, isso pode ser fatal!

No mais, Piquenique na estrada é uma FC esquisita, todavia singular, verossímil e realista. Crua, dura, sarcástica e crítica. Robôs e raios de laser? Luzes, explosões, conflitos cósmicos? A vitória e supremacia da humanidade frente à inteligência e dominação alienígenas? Longe, bem longe disso! Tão somente o inimaginável processado pelo nosso egocentrismo e transformado em algo ordinário. Apenas o mundano, as implicações e indagações sobre a gente mesmo e os nossos sistemas ideológicos e sociais que, no fim, metaforizam a luta existencial contra a incômoda verdade da insignificância do homem no panorama cósmico.