terça-feira, 24 de setembro de 2024

Sem título

                                                                                  (2021/2024)


 

domingo, 14 de julho de 2024

A árvore mais sozinha do mundo, de Mariana Salomão Carrara

A árvore mais sozinha do mundo (TAG, em parceria com a Todavia, 2024) é o mais recente romance de Mariana Salomão Carrara. Nele, conhecemos o duro dia a dia de Carlos, Guerlinda, Maria, Pedro e Alice, uma família de fumicultores do interior do Sul do país frente às adversidades do plantio e colheita do tabaco e às investidas opressoras da grande indústria tabagista.

Narrado em primeira pessoa por quatro narradores distintos - uma antiga e experiente árvore venenosa, uma velha caminhonete, um culto espelho colonial e uma infantil roupa de proteção contra os venenos de agrotóxicos utilizados na lavoura -, apresenta uma história áspera e triste, emocionante e desoladora, misturando crítica social e lirismo. Tudo envolto em uma atmosfera sufocante e melancólica, permeada por leves sopros de ilusão e esperança.

São, portanto, quatro tipos de olhares sobre a mesma família, cada um deles narrando e enxergando alguns ângulos específicos que os outros não veem, e todos se complementando e oferecendo ao leitor imagens exteriores e interiores do espaço e das personagens da história - entrecruzando vozes num criativo e bem marcado discurso indireto livre. Os narradores, mesmo restritos a determinados e parciais campos de visão, são unânimes e uníssonos em narrar o sofrimento, o adoecimento e o trabalho árduo e exaustivo da família, bem como a opressão que a grande indústria do fumo exerce sobre ela, obrigando-a a (sobre)viver exclusivamente o ciclo do tabaco. 

Num espaço isolado, distante e cada vez mais envenenado pela nicotina e pelos venenos utilizados praticamente sem nenhum cuidado, que concretiza e figurativiza  a temática de uma existência quase morta, estagnada, é interessante e bastante significativo o fato dos objetos e seres inanimados serem antropomorfizados e passarem a contar a história. Um procedimento discursivo que gera efeitos de sentido bastante importantes à leitura da obra, pois mostra os seres humanos reduzidos e consumidos por um ambiente adoecido, nocivo e que vai matando-os certeira e lentamente.

E mesmo imersas nesse cenário hostil e repetitivo, castigadas pelas adversidades naturais das geadas e de um sol escaldante quando verão, além da constância impiedosa em plantar, colher e produzir algo que os mata diariamente, há uma beleza que atravessa toda a vivência das personagens, um fiapo de esperança que vai sendo tecido e rompido e novamente tecido e remendado, sempre na perspectiva de que tudo pode melhorar e de que um amanhã diferente ainda é possível. Seja no anseio de que os estudos trarão melhorias à família e à população em geral, ou de que seus esforços na lavoura serão recompensados financeiramente pelos que detêm os meio produtivos da indústria a quem seus produtos são vendidos, a saúde que pode livrar-se da doença causada pela nicotina, ou mesmo a esperança do prêmio e visibilidade na vitória de um concurso de beleza a acontecer. São esperanças frágeis, que geram um tênue véu que, infelizmente, vai se desgastando totalmente até o fim da narrativa. 

Há um tensionamento constante ao longo do romance. Dualidades digladiam-se constantemente: opressão e liberdade, vida e morte, o interno e o externo... E isso não apenas referente ao ambiente que os sufoca, ao veneno que os mata, à indústria que os explora e oprime; mas também à tensão gerada por vários conflitos internos que as personagens têm - feridas psicológicas que as marcam profundamente. Existe um mar sensível e interior que insiste em se rebelar, mas que, no entanto, quase nunca jorra ou transborda. Todos da família permanecem presos em si mesmos, "ilhados em dores particulares." O dia a dia e a rotina flagelantes mascaram e escondem um universo pouco conhecido até por eles mesmos e que, somente com a ajuda e sensibilidade dos narradores, o leitor vai apreendendo.  

Tomado de passagens intensas, doídas, que vão nos marcando, nos machucando e nos preparando para uma dor impiedosa, Mariana Salomão Carrara escreve com força expressiva e experiência. Maneja a língua portuguesa com esmero e muita habilidade artística, mesclando, sem se perder, uma porção de vozes, cada qual com sua erudição, estilos e variações de usos e materializando-as de maneira bastante verossímil e interessante. Incrusta tudo isso num contexto de denúncia social de exploração e opressão de pessoas do meio rural (mazela ainda tão presente em nosso século XXI!), e nos entrega uma obra sensível e original, onde a palavra, rebuscada e trabalhada artisticamente, transmuta-se em verdadeira Literatura.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Piquenique na estrada e a insignificância da raça humana

Piquenique na estrada, dos irmãos Arkádi e Boris Strugátski (Aleph, tradução de Tatiana Larkina), é um romance de ficção científica no mínimo curioso, estranho e interessante. Uma distopia de 1972 que gira em torno da insignificância da raça humana ante o universo e que faz do planeta Terra apenas uma simples e ocasional parada na "estrada" cósmica - daí o "piquenique" do título.


Na narrativa bastante dinâmica, cujo protagonista é Redrick Schuhart, o nosso mundo enfim recebeu a visita de alguma raça alienígena. Eles vieram, não fizeram questão de estabelecer contato e simplesmente se foram. Toda a inteligência e prepotência da humanidade são reduzidas à insignificância pelos desconhecidos seres extraplanetários, restando-nos a perplexidade, o abandono e a solidão em nossa pequena ilha de ignorância.

Na partida, talvez como uma sacola de lixo ou uma porção de peças sobressalentes trocadas de suas naves espaciais (impossível saber ao certo!), os aliens deixaram diversos objetos - e são estes, pois, que despertam indagações e a cobiça científica, militar e capitalista dos terráqueos, fazendo surgir os ditos stalkers, que são as pessoas (guias) que se embrenham e se arriscam em adentrar as Zonas de Visitação para explorar e espoliar o que for possível de artefatos para a venda ilegal. 

Redrick é um desses stalkers. Com as ações dele, o leitor vai percebendo os efeitos que tal visita provocou e provoca, tanto no ambiente quanto nas pessoas, nos governos e na sociedade em geral. Radiação, mutação genética, migração, medicina, corrida armamentista, desenvolvimento econômico... Uma miríade de implicações que vão condicionando, direta e indiretamente, o desenvolver da narração e afetando os estados de existência das pessoas. 

Dividido em três partes, o livro é narrado inicialmente em primeira pessoa (pelo próprio Redrick), em seguida um narrador em terceira pessoa assume a narração para, já na terceira parte da obra, diluir sua voz numa porção de outras - num interessante e bem-marcado discurso indireto livre. Tudo isso, refletido na materialização da trama e gerando efeitos de sentido de ritmo intenso, veloz e sem pausas (a não ser ao fim de cada uma dessas partes), faz de Piquenique na estrada uma distopia áspera, sarcástica, crítica e carregada de desesperança. 

O extraordinário, antes temido e curioso, passa ao ordinário e trivial - integrando-se às banalidades egoístas e financeiras da exploração capitalista e belicosa do homem. As instituição, obviamente, recorrem à atividade ilegal dos stalkers, travestindo-a burocraticamente com ares oficiais. As Zonas de Visitação, mesmo perigosas e mortais, são cada vez mais e mais exploradas e, não fosse pela presença física delas, até mesmo a existência de outra raça no cosmo, agora já sabida, seria completamente engolfada e esquecida pelo cotidiano mesquinho que circunda e arrasta as personagens.

Metonimicamente, Redrick figurativiza toda a espécie humana, sempre correndo em desespero por sobreviver, conseguir dinheiro e tentar mudar de vida - esta, sem grandes pretensões e com poucas perspectivas. Numa atmosfera desesperançada e cinzenta, a esperança, ironicamente, demora a aparecer e cristaliza-se, tão somente, quando se percebe que a lenda de um dos artefatos alienígena, a Esfera Dourada, pode ser verdadeira. Este objeto seria, então, responsável pela realização de qualquer desejo, desde que íntimo e sincero.

Porém, e mais uma vez irônica e contundentemente, tem-se a sacada genial da obra (que foi trabalhada de maneira magistral por Tarkóvski na adaptação Stalker, filme também dos anos 1970): o ser humano não se conhece; não faz ideia do que realmente quer; não sabe qual monstro perverso, ou mesquinho, pode habitar suas entranhas. Tomado de superficialidades, trivialidades, mesquinharias diárias, ele soterra seu mais profundo Eu, suas mais claras verdades - perde-se de si, em si mesmo. E isso o faz hesitar, ficar paralisado, temer diante de possibilidades infinitas - e, como vemos na obra, isso pode ser fatal!

No mais, Piquenique na estrada é uma FC esquisita, todavia singular, verossímil e realista. Crua, dura, sarcástica e crítica. Robôs e raios de laser? Luzes, explosões, conflitos cósmicos? A vitória e supremacia da humanidade frente à inteligência e dominação alienígenas? Longe, bem longe disso! Tão somente o inimaginável processado pelo nosso egocentrismo e transformado em algo ordinário. Apenas o mundano, as implicações e indagações sobre a gente mesmo e os nossos sistemas ideológicos e sociais que, no fim, metaforizam a luta existencial contra a incômoda verdade da insignificância do homem no panorama cósmico.

terça-feira, 2 de abril de 2024

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro

Não me abandone jamais, do escritor Kazuo Ishiguro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e com tradução de Beth Vieira, é um romance cuja força está na sutileza e a densidade na riqueza dos detalhes.

Narrado em primeira pessoa, ou seja, por uma das personagens que participa dos acontecimentos, a história gira em torno de um grupo de jovens concebidos artificialmente por meio de clonagem, criados e educados, da infância à maioridade, com a única finalidade de se tornarem doadores de órgãos no decorrer de suas breves existências. Inicialmente, eles atuam como cuidadores daqueles que já realizaram doações e, mais tarde, tornam-se, então, os próximos doadores. Têm, portanto, seus destinos traçados, do nascimento até a morte - ou "conclusão", que é o termo utilizado, conforme conta Kathy H., a narradora do drama.

Ao longo do relato de Kathy H., vamos acompanhando-a, juntamente com seus amigos, desde a fase escolar no instituto Hailsham, passando pela adolescência deles (sempre nessa instituição, uma espécie de internato) até a maioridade - que é quando todos saem para dedicar-se à atuação enquanto cuidadores e, posteriormente, às doações. O ponto inicial dessas memórias é o fim dos anos de 1990, com a protagonista já atuando como cuidadora, com retornos às lembranças da infância e adolescência, numa narrativa alinear (do presente ao passado e, novamente, ao presente).

Evidente que esses relatos em primeira pessoa garantem efeitos de verdade ao que é contado e, o mais significativo, efeitos de subjetividade - por mais objetiva e isenta que a narradora tente parecer ao contar os fatos. Bastante detalhista, a personagem vai arrastando o leitor a todo um universo ficcional extremamente verossímil e sensível, até ao ponto do leitor nem cogitar suspender esse véu de crença nessa suprarrealidade apresentada. Ele realmente crê na problemática discutida, nessa recriação da realidade, e se torna um cuidador também - o verdadeiro destinatário do discurso de Kathy.

O texto é fundamentado (isto é, todos os seus sentidos provêm daí) na oposição básica Natural vs Artificial, ou Natureza vs Cultura, sendo o Natural valorizado positivamente e o Artificial de maneira negativa, pois os indivíduos clonados não são considerados humanos, são criados tendo em vista uma única serventia, que é preservar-se fisicamente para futuras doações de órgãos. Tal sujeito (clones) não questiona essa relação, está, pois, em junção com esse objeto futuro pré-estabelecido e ofertado pelo destinador Hailsham (e todo o projeto representado por ele) que o manipula, principalmente, por sedução, dizendo-o "especial". O sujeito clones passa, em certo ponto da narrativa, a tentar alterar, ao menos em parte, toda essa previsibilidade futura, mas é uma tentativa não de completa negação de seu destino, mas sim de um adiamento de seus deveres acordados com seu destinatário - que, mesmo assim, são cumpridos no final. Portanto, o Natural é afirmado ao fim, já que os jovens clonados, artificiais, não escapam às determinações do futuro planejado a eles: realizar as doações para que outros, os humanos naturais, possam viver.

Isso em linhas gerais, numa rápida ponderação levando em conta a teoria Semiótica, que descreve e explica como se dá a construção dos sentidos de um texto qualquer. Os relatos da narradora tematizam e recobrem tudo o que foi apontado no parágrafo anterior. A tentativa de entender sua situação no mundo e viver como um ser humano natural, mesmo que por pouquíssimo tempo, é a temática central. Outros temas orbitam ao redor disso, relacionando-se e se interpenetrando: o amor, a amizade, a esperança, a ingenuidade face ao mundo, tudo isso figurativizado pelas personagens, suas ações e gestos, suas roupas e objetos; pelos espaços semi-vazios, pelas estradas distante e desertas, pelos distanciamentos dos grandes centros urbanos. Datas, fases da vida, estações do ano e as memórias de Kathy e seus poucos amigos: tudo vai recobrindo e figurativizando toda a sensibilidade desses temas.

Edificações antigas, solitárias e em meio à natureza, ligadas por longas e desertas estradas. Um clima sempre frio, mesmo no verão, com céus cinzentos. Estrutura educacional rígida, tradicional e calcada em normas e regras severas. Todas essa figuras, esses símbolos imagéticos dão à narrativa efeitos de sentido de mistérios e segredos, frieza e desesperança, tristeza e melancolia - que se aliam ao caráter nostálgico dos fatos contados. Essa atmosfera, que cromatiza de cinza Não me abandone jamais, permanece do início ao fim da obra. 

É um lembrar e relembrar constante, restrito principalmente a três espaços: Hailsham, o Casario e os centros médicos - os três representando gradações do peso e densidade da narrativa. O primeiro é o menos denso, espaço de amizades, aprendizagens, brincadeiras e descobertas; o segundo é o conflito com a saída da adolescência e um novo olhar para si mesmo, visando a proximidade das doações; por fim, o último, e mais denso, os centros médicos, é o fim - do outro e de si mesmo, é o perceber-se cada vez mais sozinho, é o agarrar-se às lembranças, e nada mais. Eis todo o universo dessas personagens, todo o mundo por elas conhecido. 

Diante disso, tendo esse único horizonte à frente, não há sequer a cogitação, já na fase adulta, ou até mesmo na rebeldia da adolescência, de tentar fugir de tudo isso, sumir, lutar por uma outra vida, resistir etc. Existe apenas um caminhar lento e constante rumo a um inexorável destino, a um futuro próximo, pré-determinado e inevitável. Por isso o rememorar constante do passado, o agarrar-se às memórias (que, em muitos momentos, parecem até ingênuas) - única coisa significativa que as personagens têm. 

Até mesmo o amor, tema bastante caro à obra, é baço, sem brilho. É belo e comovente, mas sem vigor e com força apenas para tentar adiar o inevitável. Representa tão somente um abraço desesperado às poucas e frágeis memórias construídas e materializadas no ser amado, porém já antevendo que o futuro irá separá-los. Os dois trechos abaixo, envolvendo Kathy H. e Tommy, exemplificam bem essa ideia.

(...) "Então percebi que também ele me abraçava. E assim permanecemos ambos, na beira de um pasto, durante o que me pareceu um tempo enorme, sem dizer nada, apenas abraçados, enquanto o vento soprava furioso contra nós, puxando nossas roupas, a tal ponto que por alguns momentos parecia que estávamos agarrados um ao outro porque era a única forma de não sermos varridos para dentro da noite." (pág. 327)

(...) "Soltou uma risada curta e me deu um abraço, embora continuássemos sentados lado a lado. E continuou: 'Não consigo parar de pensar nesse rio, não sei onde, cujas águas se movem com uma velocidade impressionante. E nas duas pessoas dentro da água, tentando se segurar uma na outra, se agarrando o máximo que podem, mas no fim não dá mais. A corrente é muito forte. Eles precisam se soltar, se separar. É assim que eu acho que acontece com a gente. É uma pena, Kath, porque nós nos amamos a vida toda. Mas, no fim, não deu para ficarmos juntos para sempre.'" (pág. 337) 

Não me abandone jamais, como dito no início deste texto, é um romance bastante sutil e sensível, onde tudo vai sendo desvelado e construído lentamente e com riqueza de detalhes, problematizando, inclusive, se o ser clonado possui ou não alma - e como a arte, para alguns, é um fator decisivo nessa questão. Triste, cinza, desesperançado. Mas muito lírico em mostrar o quanto tentamos nos agarrar não à vida ou ao mundo em geral, mas às coisas próximas, que nos tocam diretamente - e que, justamente por isso, nos importam realmente. Uma tentativa de mantermo-nos unidos a isso, abraçados, mesmo sabendo que lá mais adiante, inevitavelmente, teremos que nos separar.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Sem título

desprende
do chão
esses olhos
faz força
e levanta esse rosto
(junta, pois, tudo de si
em si)
e os atira
bem longe
lá pro horizonte

lugar onde habita
e faz morada
toda esperança.