(2021/2024)
A árvore mais sozinha do mundo (TAG, em parceria com a Todavia, 2024) é o mais recente romance de Mariana Salomão Carrara. Nele, conhecemos o duro dia a dia de Carlos, Guerlinda, Maria, Pedro e Alice, uma família de fumicultores do interior do Sul do país frente às adversidades do plantio e colheita do tabaco e às investidas opressoras da grande indústria tabagista.
Narrado em primeira pessoa por quatro narradores distintos - uma antiga e experiente árvore venenosa, uma velha caminhonete, um culto espelho colonial e uma infantil roupa de proteção contra os venenos de agrotóxicos utilizados na lavoura -, apresenta uma história áspera e triste, emocionante e desoladora, misturando crítica social e lirismo. Tudo envolto em uma atmosfera sufocante e melancólica, permeada por leves sopros de ilusão e esperança.
São, portanto, quatro tipos de olhares sobre a mesma família, cada um deles narrando e enxergando alguns ângulos específicos que os outros não veem, e todos se complementando e oferecendo ao leitor imagens exteriores e interiores do espaço e das personagens da história - entrecruzando vozes num criativo e bem marcado discurso indireto livre. Os narradores, mesmo restritos a determinados e parciais campos de visão, são unânimes e uníssonos em narrar o sofrimento, o adoecimento e o trabalho árduo e exaustivo da família, bem como a opressão que a grande indústria do fumo exerce sobre ela, obrigando-a a (sobre)viver exclusivamente o ciclo do tabaco.
Num espaço isolado, distante e cada vez mais envenenado pela nicotina e pelos venenos utilizados praticamente sem nenhum cuidado, que concretiza e figurativiza a temática de uma existência quase morta, estagnada, é interessante e bastante significativo o fato dos objetos e seres inanimados serem antropomorfizados e passarem a contar a história. Um procedimento discursivo que gera efeitos de sentido bastante importantes à leitura da obra, pois mostra os seres humanos reduzidos e consumidos por um ambiente adoecido, nocivo e que vai matando-os certeira e lentamente.
E mesmo imersas nesse cenário hostil e repetitivo, castigadas pelas adversidades naturais das geadas e de um sol escaldante quando verão, além da constância impiedosa em plantar, colher e produzir algo que os mata diariamente, há uma beleza que atravessa toda a vivência das personagens, um fiapo de esperança que vai sendo tecido e rompido e novamente tecido e remendado, sempre na perspectiva de que tudo pode melhorar e de que um amanhã diferente ainda é possível. Seja no anseio de que os estudos trarão melhorias à família e à população em geral, ou de que seus esforços na lavoura serão recompensados financeiramente pelos que detêm os meio produtivos da indústria a quem seus produtos são vendidos, a saúde que pode livrar-se da doença causada pela nicotina, ou mesmo a esperança do prêmio e visibilidade na vitória de um concurso de beleza a acontecer. São esperanças frágeis, que geram um tênue véu que, infelizmente, vai se desgastando totalmente até o fim da narrativa.
Há um tensionamento constante ao longo do romance. Dualidades digladiam-se constantemente: opressão e liberdade, vida e morte, o interno e o externo... E isso não apenas referente ao ambiente que os sufoca, ao veneno que os mata, à indústria que os explora e oprime; mas também à tensão gerada por vários conflitos internos que as personagens têm - feridas psicológicas que as marcam profundamente. Existe um mar sensível e interior que insiste em se rebelar, mas que, no entanto, quase nunca jorra ou transborda. Todos da família permanecem presos em si mesmos, "ilhados em dores particulares." O dia a dia e a rotina flagelantes mascaram e escondem um universo pouco conhecido até por eles mesmos e que, somente com a ajuda e sensibilidade dos narradores, o leitor vai apreendendo.
Tomado de passagens intensas, doídas, que vão nos marcando, nos machucando e nos preparando para uma dor impiedosa, Mariana Salomão Carrara escreve com força expressiva e experiência. Maneja a língua portuguesa com esmero e muita habilidade artística, mesclando, sem se perder, uma porção de vozes, cada qual com sua erudição, estilos e variações de usos e materializando-as de maneira bastante verossímil e interessante. Incrusta tudo isso num contexto de denúncia social de exploração e opressão de pessoas do meio rural (mazela ainda tão presente em nosso século XXI!), e nos entrega uma obra sensível e original, onde a palavra, rebuscada e trabalhada artisticamente, transmuta-se em verdadeira Literatura.
Não me abandone jamais, do escritor Kazuo Ishiguro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e com tradução de Beth Vieira, é um romance cuja força está na sutileza e a densidade na riqueza dos detalhes.
Narrado em primeira pessoa, ou seja, por uma das personagens que participa dos acontecimentos, a história gira em torno de um grupo de jovens concebidos artificialmente por meio de clonagem, criados e educados, da infância à maioridade, com a única finalidade de se tornarem doadores de órgãos no decorrer de suas breves existências. Inicialmente, eles atuam como cuidadores daqueles que já realizaram doações e, mais tarde, tornam-se, então, os próximos doadores. Têm, portanto, seus destinos traçados, do nascimento até a morte - ou "conclusão", que é o termo utilizado, conforme conta Kathy H., a narradora do drama.
Ao longo do relato de Kathy H., vamos acompanhando-a, juntamente com seus amigos, desde a fase escolar no instituto Hailsham, passando pela adolescência deles (sempre nessa instituição, uma espécie de internato) até a maioridade - que é quando todos saem para dedicar-se à atuação enquanto cuidadores e, posteriormente, às doações. O ponto inicial dessas memórias é o fim dos anos de 1990, com a protagonista já atuando como cuidadora, com retornos às lembranças da infância e adolescência, numa narrativa alinear (do presente ao passado e, novamente, ao presente).
Evidente que esses relatos em primeira pessoa garantem efeitos de verdade ao que é contado e, o mais significativo, efeitos de subjetividade - por mais objetiva e isenta que a narradora tente parecer ao contar os fatos. Bastante detalhista, a personagem vai arrastando o leitor a todo um universo ficcional extremamente verossímil e sensível, até ao ponto do leitor nem cogitar suspender esse véu de crença nessa suprarrealidade apresentada. Ele realmente crê na problemática discutida, nessa recriação da realidade, e se torna um cuidador também - o verdadeiro destinatário do discurso de Kathy.
O texto é fundamentado (isto é, todos os seus sentidos provêm daí) na oposição básica Natural vs Artificial, ou Natureza vs Cultura, sendo o Natural valorizado positivamente e o Artificial de maneira negativa, pois os indivíduos clonados não são considerados humanos, são criados tendo em vista uma única serventia, que é preservar-se fisicamente para futuras doações de órgãos. Tal sujeito (clones) não questiona essa relação, está, pois, em junção com esse objeto futuro pré-estabelecido e ofertado pelo destinador Hailsham (e todo o projeto representado por ele) que o manipula, principalmente, por sedução, dizendo-o "especial". O sujeito clones passa, em certo ponto da narrativa, a tentar alterar, ao menos em parte, toda essa previsibilidade futura, mas é uma tentativa não de completa negação de seu destino, mas sim de um adiamento de seus deveres acordados com seu destinatário - que, mesmo assim, são cumpridos no final. Portanto, o Natural é afirmado ao fim, já que os jovens clonados, artificiais, não escapam às determinações do futuro planejado a eles: realizar as doações para que outros, os humanos naturais, possam viver.
Isso em linhas gerais, numa rápida ponderação levando em conta a teoria Semiótica, que descreve e explica como se dá a construção dos sentidos de um texto qualquer. Os relatos da narradora tematizam e recobrem tudo o que foi apontado no parágrafo anterior. A tentativa de entender sua situação no mundo e viver como um ser humano natural, mesmo que por pouquíssimo tempo, é a temática central. Outros temas orbitam ao redor disso, relacionando-se e se interpenetrando: o amor, a amizade, a esperança, a ingenuidade face ao mundo, tudo isso figurativizado pelas personagens, suas ações e gestos, suas roupas e objetos; pelos espaços semi-vazios, pelas estradas distante e desertas, pelos distanciamentos dos grandes centros urbanos. Datas, fases da vida, estações do ano e as memórias de Kathy e seus poucos amigos: tudo vai recobrindo e figurativizando toda a sensibilidade desses temas.
Edificações antigas, solitárias e em meio à natureza, ligadas por longas e desertas estradas. Um clima sempre frio, mesmo no verão, com céus cinzentos. Estrutura educacional rígida, tradicional e calcada em normas e regras severas. Todas essa figuras, esses símbolos imagéticos dão à narrativa efeitos de sentido de mistérios e segredos, frieza e desesperança, tristeza e melancolia - que se aliam ao caráter nostálgico dos fatos contados. Essa atmosfera, que cromatiza de cinza Não me abandone jamais, permanece do início ao fim da obra.
É um lembrar e relembrar constante, restrito principalmente a três espaços: Hailsham, o Casario e os centros médicos - os três representando gradações do peso e densidade da narrativa. O primeiro é o menos denso, espaço de amizades, aprendizagens, brincadeiras e descobertas; o segundo é o conflito com a saída da adolescência e um novo olhar para si mesmo, visando a proximidade das doações; por fim, o último, e mais denso, os centros médicos, é o fim - do outro e de si mesmo, é o perceber-se cada vez mais sozinho, é o agarrar-se às lembranças, e nada mais. Eis todo o universo dessas personagens, todo o mundo por elas conhecido.
Diante disso, tendo esse único horizonte à frente, não há sequer a cogitação, já na fase adulta, ou até mesmo na rebeldia da adolescência, de tentar fugir de tudo isso, sumir, lutar por uma outra vida, resistir etc. Existe apenas um caminhar lento e constante rumo a um inexorável destino, a um futuro próximo, pré-determinado e inevitável. Por isso o rememorar constante do passado, o agarrar-se às memórias (que, em muitos momentos, parecem até ingênuas) - única coisa significativa que as personagens têm.
Até mesmo o amor, tema bastante caro à obra, é baço, sem brilho. É belo e comovente, mas sem vigor e com força apenas para tentar adiar o inevitável. Representa tão somente um abraço desesperado às poucas e frágeis memórias construídas e materializadas no ser amado, porém já antevendo que o futuro irá separá-los. Os dois trechos abaixo, envolvendo Kathy H. e Tommy, exemplificam bem essa ideia.
(...) "Então percebi que também ele me abraçava. E assim permanecemos ambos, na beira de um pasto, durante o que me pareceu um tempo enorme, sem dizer nada, apenas abraçados, enquanto o vento soprava furioso contra nós, puxando nossas roupas, a tal ponto que por alguns momentos parecia que estávamos agarrados um ao outro porque era a única forma de não sermos varridos para dentro da noite." (pág. 327)
(...) "Soltou uma risada curta e me deu um abraço, embora continuássemos sentados lado a lado. E continuou: 'Não consigo parar de pensar nesse rio, não sei onde, cujas águas se movem com uma velocidade impressionante. E nas duas pessoas dentro da água, tentando se segurar uma na outra, se agarrando o máximo que podem, mas no fim não dá mais. A corrente é muito forte. Eles precisam se soltar, se separar. É assim que eu acho que acontece com a gente. É uma pena, Kath, porque nós nos amamos a vida toda. Mas, no fim, não deu para ficarmos juntos para sempre.'" (pág. 337)
Não me abandone jamais, como dito no início deste texto, é um romance bastante sutil e sensível, onde tudo vai sendo desvelado e construído lentamente e com riqueza de detalhes, problematizando, inclusive, se o ser clonado possui ou não alma - e como a arte, para alguns, é um fator decisivo nessa questão. Triste, cinza, desesperançado. Mas muito lírico em mostrar o quanto tentamos nos agarrar não à vida ou ao mundo em geral, mas às coisas próximas, que nos tocam diretamente - e que, justamente por isso, nos importam realmente. Uma tentativa de mantermo-nos unidos a isso, abraçados, mesmo sabendo que lá mais adiante, inevitavelmente, teremos que nos separar.