Alvar Mayor, publicado em volumes definitivos no Brasil desde 2019 pela Editora Lorentz, é um quadrinho que, por ser bastante diferente do que as grandes editoras costumam publicar por aqui, merece ser lido, apreciado e discutido não apenas por aqueles habituados ao mundo da nona arte, mas também por amantes e críticos de arte em geral.
Concebido na década de 70 do século XX por dois dos maiores nomes dos quadrinhos da Argentina, Carlos Trillo e Enrique Breccia, Alvar Mayor é uma obra ímpar, composta por pequenas narrativas que individualizam temas universais tais como o amor, a morte, a vingança, o existir, a loucura etc., cada qual com níveis de profundidade variados e sempre interessantes de serem observados.
A personagem que dá título à criação, Alvar, não é um grande herói - no sentido habitual da palavra quando referente aos quadrinhos; antes, porém, é bastante humano, e é isso, também, que faz a publicação ser objeto de apreciação. Ele é falho, assombrado por remorsos de um passado que vamos tentando apreender ao longo das narrativas, que são contadas de maneira não linear, esparsas, quase soltas displicentemente ao bel-prazer dos autores, tais quais contos folclóricos narrados à medida que vão sendo rememorados.
Além disso, a personagem é solitária por essência, mas não a solidão egoísta tão presente em outras HQs, antes é uma solidão quase lírica, imprescindível ante as incertezas do futuro e da sua "poética, perigosa, mas necessária caminhada" (como consta na introdução do Volume 2, recém-lançado). Alvar é, portanto, dividido e arrastado constantemente de seu presente pelo incerto e escuro porvir e pelo peso das experiências pretéritas.
Mesmo suscetível ao erro e às falhas inerentes ao ser humano, Alvar é íntegro, de personalidade racional e forte, e sempre disposto a lutar por alguma causa que lhe pareça nobre. É um observador astuto do outro, empático, e sempre aprende lições que os caminhos da vida estão a ensinar. Erra, mas adquire sabedoria com seus erros, enquanto perambula pelo mundo sempre em busca de algo, mesmo sem saber ao certo o quê. E tudo isso movido pelo sentimento do amor: talvez o amor ao mistério do acaso; talvez o amor de Lucía, sua eterna amada; ou mesmo o amor pelo caminhar constante, a esmo, desbravando terras e pessoas desconhecidas - solos férteis ao nascimento do novo, seja ele qual for.
Encontramos aventuras, ação, emoção, dinamismo e muito mais nas narrativas de Alvar Mayor; mas tudo isso é secundário ante as reflexões que elas próprias nos trazem. São histórias que terminam, mas continuam por algum tempo em nossa consciência, sendo preenchidas e complementadas por nossas experiências pessoais. Histórias que continuam ressoando na gente. Todas elas materializadas, figurativizadas, no singular preto e branco do artista Enrique Breccia, um gênio que faz de cada página um painel artístico de elevado padrão estético. Um assombro de traços realistas, de luz e sombra.
Como tudo é atravessado ideologicamente, e com sua contextualização histórica referente ao século XVII, Alvar Mayor tece críticas à colonização desumana ocorrida nas américas, ao homem branco, predador e opressor, a toda elite gananciosa - que vê o lucro antes mesmo do humano - e, ainda, àqueles que, tais como cegos, enxergam apenas e tão somente a si mesmos, nunca a realidade circundante. Ponderações que, espalhadas aqui e ali ao longo das inúmeras páginas, tornam a leitura ainda mais rica e instigante.
Com a colaboração de uma equipe bastante competente (em tradução, edição, revisão, restauração de originais etc.), a Editora Lorentz acerta pela segunda vez no mercado das histórias em quadrinhos do Brasil: a primeira por publicar e "ressuscitar" Dylan Dog, o Investigador do Pesadelo em nossas terras e, agora, com os belos e importantes volumes de Alvar Mayor. Materiais de alta qualidade, rico e diferenciado conteúdo (temático e estilístico) e preço bastante justo. Um ganho muito significativo à nona arte em geral e aos leitores brasileiros.