quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Intertextualidade, arte e Dylan Dog

As artes, em geral, referenciam-se constantemente por meio de alusões, paráfrases, citações, paródias etc., dialogando entre si de maneira explícita ou implícita. A isso os estudiosos da área de Letras, responsáveis pelos estudos sobre linguagem, língua e discurso dão o nome de intertextualidade (ou interdiscursividade) que, grosso modo, é a relação dialógica que determinado texto (ou discurso) estabelece com outro(s) texto(s) ou discurso(s). Os quadrinhos, enquanto produção artística e textual, não escapam a isso e estão repletos de referências a outros objetos textuais; estão em diálogo constante em relação a diversos discursos artístico-culturais e são, portanto, ótimos meios de apreendermos e abordarmos esse fenômeno bastante presente em nosso cotidiano.

Um bom exemplo para essa discussão são as histórias em quadrinhos de Dylan Dog, o Investigador do Pesadelo. Por mesclar em suas narrativas as literaturas fantástica, de horror e policial, o cinema, a pintura e a cultura londrina como plano de fundo para suas insólitas tramas, tem-se presente a intertextualidade, já que a personagem dialoga, direta e indiretamente, com todas essas referências literárias, cinematográficas, pictóricas; com todos esses textos (ou discursos). Ou seja, ao lermos alguma HQ de Dylan Dog, também lemos esses outros textos e discursos que constam em suas páginas, intertextual e interdiscursivamente.



Na edição 12 de Dylan Dog Nova Série - A morta não esquece (Mythos Editora, 2020), a intertextualidade é fator fundamental para a construção dos vários sentidos da história. É uma edição que dialoga explicitamente com publicações anteriores do Investigador londrino, fazendo referência à clássica primeira HQ de Dylan e às edições 1 e 7 desta Nova Série. Personagens, falas e situações são retomadas, referenciadas num diálogo constante ao longo de toda a narrativa. 

Claro que essas alusões intertextuais são, muitas vezes, implícitas e sutis. E, para sua percepção e apreensão, nesses casos, dois pontos são fundamentais aos leitores: a curiosidade e o seu repertório sociocultural. Em relação à curiosidade, o leitor deve ter em mente que num texto bem construído tudo se relaciona harmoniosamente, ou seja, NADA está ali por acaso, por engano, em excesso: TUDO gera efeitos de sentidos e TUDO se entrelaça na (e para a) construção de significados do texto. 

Exemplos disso, dentre os muitos que há na citada história, são as referências culturais apresentadas na primeira página de A morta não esquece, quando a roteirista Paola Barbato e o desenhista Bruno Brindisi nos mostram algumas "velharias" (uma caixa antiga do jogo D&D, algumas revistas clássicas de Creepy, Vampirella, Heavy Metal...) das quais Dylan precisa se desfazer. Isso já antecipa sentidos e significados: a trama da vez fará alusão ao passado (e talvez à dificuldade de esquecê-lo). Tudo, mais uma vez, relaciona-se com harmonia ao todo do texto, basta sermos curiosos para perceber e tentar correlacionar o que nos parece solto, díspar ou que está sobrando na página - algo que pode, por vezes, passar despercebido por parecer apenas capricho ou brincadeira dos autores.

Quanto ao repertório sociocultural do leitor, o que ele conhece da cultura e sociedade em geral, sua bagagem cultural, a relação intertextual em questão é bastante sutil, mas muito intrigante: na página 34 vemos, no momento de uma batida policial, uma estranha cena que mostra vários coadjuvantes mortos, empalhados e dispostos em insólitas poses.



Mesmo bastante incomum, dificilmente tal imagem nos remeta a algo conhecido, e provavelmente não encontremos nada semelhante em nossos conhecimentos prévios, em nosso repertório sociocultural. É algo bastante sutil e pode, facilmente, passar despercebido à medida que a leitura avança. Mas, lembremos: NADA num texto bem construído é por acaso; logo, uma imagem como essa também não é. E é aí que a curiosidade do leitor age mais uma vez: se lermos a imagem mais detidamente, conseguimos perceber que no livro sobre a mesa está escrito "M. MERISI". Uma rápida pesquisa nos revelará que esse é o nome de Caravaggio (importante pintor Barroco do século 16), daí é só contemplar algumas de suas obras para deparar-se com a bela e enigmática O martírio de São Matheus.



Assim, o que parecia algo aleatório, na verdade revela-se um diálogo intertextual interessantíssimo e, o mais relevante em se tratando de um objeto textual, vasto em criar efeitos de sentidos e significados para a narrativa. O principal deles, nesse caso, é o fato de A morta não esquece ancorar-se em rixas e problemas familiares para construir-se - basta lembrarmos de Nora Cuthbert e sua singular família -; temas que também são abordados pelo quadro de Caravaggio. Portanto, e mais uma vez: em textos bem construídos nenhum elemento é resultado do acaso; todas as partes são deliberadamente dispostas e correlacionadas.

No mais, são "detalhes" como esses que tornam a leitura cada vez mais enriquecedora, pois instiga e inquieta a curiosidade do leitor - e este deve ser sempre um curioso! - e amplia seu repertório sociocultural, algo fundamental para ler não apenas quadrinhos, mas a sociedade e o mundo em geral - visto que tudo se entranha e se engendra nesse texto maior, nesse grande discurso que são a existência e as grandes criações da humanidade.

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